Não
vai ser fácil encontrar o novo livro de Luiz Bras, Máquina Macunaima. Contrabandeados de outra realidade dimensional,
chegaram à nossa apenas 50 exemplares. Dadas as patentes qualidades do volume,
podemos lamentar que o livro não tenha sido publicado em nossa dimensão ou,
melhor, agradecer que ao menos alguns exemplares tenham passados incólumes pela
transição de uma realidade a outra.
Lendo o autor, chego a duvidar
que Bras seja nativo de nosso plano dimensional. O outro plano, aquele onde
Máquina Macunaíma foi publicado, talvez
tenha, ele sim, dado origem ao atípico autor de ficção científica e fantasia. É
o que me dá a entender um dado biográfico encontrado em seus livros: ele teria
nascido em uma cidade chamada Cobra Norato, no Mato Grosso do Sul. Ora, sei bem
que por aqui no MS não existe uma cidade com esse nome. Na nossa realidade,
não; na de Bras, talvez. (Em seu
blog pessoal, o
autor volta e meia fala sobre sua cidade natal; vale conferir.)
No
novo livro, ele parece continuar a desenvolver uma proposta afim à de Nelson de
Oliveira em projetos como a antologia de contos Futuro Presente (2009) e a série Portais, que teve alguns de seus contos compilados em um volume
único, Todos os Portais: Realidades
Expandidas (2012). A proposta de Oliveira, na organização dessas
antologias, é aliar a auto-intitulada literatura mainstream, definida e delimitada por critérios formais, à
literatura de gênero, por critérios temáticos. Isso, notemos, não demanda
obrigatoriamente uma aderência ao preconceito frequente de que a literatura de
gênero não dá atenção à forma; apenas que ela não é reconhecida como tal pela
forma. Não por acaso, Nelson de Oliveira é o autor que cede suas mãos para que
Bras escreva em nossa realidade e possa nela atuar.


Máquina Macunaíma é uma progressão
natural do Bras visto em, por exemplo,
Paraíso
Líquido (2010) e
Sozinho no Deserto Extremo (2012).É uma coletânea bastante coerente em suas opções formais e
temáticas, a forma produtivamente interagindo com o tema e cambiando conforme
suas exigências. Tematicamente, a coletânea se alinha à ficção científica
contemporânea que incorpora a aversão a verdades absolutas e a incerteza que
Freud, Einstein, Heisenberg e outros trouxeram para o pensamento a partir do
século XX (tratei do ponto
neste ensaio publicado na
Zanzalá – Revista Brasileira
de Estudos de Ficção Científica). Abaixo, breves notas sobre os contos da
coletânea.


“Virtuais”,
conto que abre a coletânea, trata de uma crítica já clichê quando se fala na
imersão contemporânea em redes sociais e o consequente distanciamento provocado
nas relações interpessoais. O olhar ficcional sobre essa válida crítica -
embora por demais repetida – a reveste de novidade pela extrapolação e pelo
exagero. No conto, se dá de forma literal o afastamento que paradoxalmente
acompanha a aproximação no plano virtual. A grafia em itálico, que demarca o
que se dá na rede, aparece pouco no começo do texto, mas acaba por prevalecer
quando o afastamento entre os personagens se faz absoluto.
O
conto seguinte, “Heidegger não voltará jamais”, desde o título nega a aplicação
de conceitos pré-moldados ao homem e ao seu comportamento. Heidegger, o
filósofo, é conhecido pelas especulações acerca do “ser” e das circunstâncias
que condicionam sua existência. No conto, por outro lado, a tentativa de
alcançar uma classificação abrangente, totalizante, de seus personagens está
fadada ao fracasso. Frente à diversidade e à dúvida (quanto ao gênero sexual,
por exemplo), não há como classificar de forma segura os seres com base em seus
anseios ou em sua própria condição. Tudo isso numa narrativa policialesca
ambientada em um bizarro futuro.
“Onde
vivem os monstros” é de interesse para os que acompanham Bras e sua carreira: é
ambientado na cidade natal do autor, Cobra Norato. O evento motriz do enredo é
a proibição do prefeito ao Museu da Escultura da cidade, depois que um acidente
com uma das peças provocou a morte de seu filho. A dor e o incômodo de teor
crítico que a arte é capaz de provocar ou despertar são, assim, alegorizados. Diz
o narrador: “Quem disse que a função da arte não é apenas entreter e deleitar,
mas provocar e inquietar, estava certo. Provocar, inquietar, romper, fraturar a
ignorância e o obscurantismo. Quebrar os ossos da ignorância.” Um grupo se
organiza pela internet para, protestando, ocupar o museu. Então, o enredo
introduz, em um universo ficcional à primeira vista apegado à apresentação
realista, um elemento fantástico que acentua a distinção e a troca que pode se
dar entre o mundo e sua representação artística.
“Impostor?”
traz à cena a dúvida entre real e irreal, natural e artificial, que a ficção
científica passou a manejar com maior intensidade a partir da New Wave norte-americana. É ambientado,
pois, em um mundo onde as certezas quanto à identidade do próximo se vêem
abaladas. Coincidentemente, a New Wave
pode ser caracterizada pelo esgarçar da forma narrativa em aliança ao tema da
dúvida. Sugere-se uma relação entre Bras e aquele grupo de autores, relação
que pode muito render se explorada futuramente em textos críticos – acadêmicos
ou não.
“Mecanismos
precários” chama atenção pelo desvendar do processo criativo, que é explicitamente
dado pelo narrador, em uma voluntária quebra do pacto ficcional. Os personagens
e tudo o que o cerca são arquitetados às vistas do leitor, nublando a separação
entre o narrador e o autor. Observa-se em primeira mão os seres de papel
ganhando uma espécie de vida própria (distinta daquela dos seres palpáveis) e
escapando aos desígnios traçados por aquele que narra, o criador. A despeito da
tão atípica construção dos personagens, Bras surpreendentemente consegue criar
uma empatia do leitor para com eles.
O
tópico da identidade em seus limites e deslimites retorna em “O índio no abismo
sou eu”. O conto traz à tona um ponto bastante presente na ficção científica
produzida à margem dos centros hegemônicos: o desarranjo entre o avanço
científico e a quantidade de benefícios trazidos ao homem. A desigualdade que
acompanha a distribuição de novas tecnologias, afinal, é mais patente ou fácil
de ser observada em um contexto alheio aos padrões de desenvolvimento hegemônicos.
Como diz um dos personagens, “o futuro é apenas para quem pode pagar”.
Uma
questão de ordem filosófica atormenta a protagonista de “Coisas que a gente não
vê todo dia”: o infinito e a natureza do tempo. Seus questionamentos parecem
promover mudanças na própria tessitura de sua realidade de jovem outsider, o que conduz a descobertas
acerca de sua própria condição. A conclusão do conto chega a um parodoxo que não
o é: o tempo tem uma natureza simultaneamente cíclica e infinita; o eterno
retorno é também uma eterna mudança.
“Humana,
demasiadamente humana” é um atípico conto “de gênero”: a fantasia (relacionada
a uma percepção animista de mundo) e a ficção científica (ligada à ciência ou,
ao menos, à apreensão cognitiva da realidade) trocam de lugar. No universo
ficcional configurado pelo texto, a magia é banal e a tecnologia é a exceção; a
magia provoca catástrofes ambientais cósmicas e a tecnologia pode evitá-las.
Novamente, a protagonista é uma jovem que não consegue encontrar seu lugar no
mundo.
O
enredo de “Distrito Federal” guarda semelhanças com o primeiro conto da
coletânea: a relação entre o mundo palpável e o virtual se dá com desarranjo; a
noção de “real” se vê abalada e crivada de incertezas. Ambientado em Cobra
Norato, o texto trata da interferência de um MMORPG na realidade mundana. Como
é recorrente em Bras, os personagens principais são marginais, excluídos.
“Os
olhos do gato” se dá em um mundo de estrutura matriarcal fortemente
militarizada. Nele, as mulheres é que são criadas de acordo com uma perspectiva
belicista. O título do conto remete a um rito pelo qual as guerreiras precisam
passar para provar sua maturidade: cada uma deve arrancar os olhos do gato que
criou, banida a compaixão. O texto, de acordo com uma das leituras possíveis,
parece elaborar ficcionalmente a seguinte questão: para neutralizar os
conflitos e constituir um mundo igualitário e pacifista, não basta a mera inversão
de papéis; é necessária uma mudança profunda de perspectiva (de olhar), para
que os mesmos erros cometidos pela sociedade patriarcal não se repitam em outro
contexto – uma sociedade matriarcal, no caso do conto.
“Galáxias”
é outro texto que lida com arranjos e desarranjos entre o palpável e o virtual.
Avatares como Machado, Capitu, Borges e Isaac interagem, reduzidos a arquétipos
que um vírus no sistema ameaça destruir. A questão da permanência da literatura
quando seu suporte físico é modificado parece ser o tema central do conto.
“Primeiro
de Abril: Corpus Christi”, o último conto do livro,se apropria de ícones da
cultura pop, deslocando-os de seu contexto original para apresentá-los como que
fazendo parte de um indistinto caldo cultural. Personagens como Homem de Lata,
Chapeleiro Louco e Mulher Maravilha perdem seus traços distintivos, e o texto não
constitui um diálogo propriamente dito com o que foi apropriado. A relação
intertextual se vê manca, carente de um apoio maior na cultura pop que é
matéria para apropriação. Isso porque o interesse não parece ser discutir os
signos em si, mas como a representação midiática (de um lado) e a artística (de
outro) podem, apropriando, desfigurar ou transfigurar. É uma proposta afim à de
Roberto Drummond em alguns dos contos de A
Morte de D. J. em Paris (1975).
Falando
nisso, diversos contos de Máquina
Macunaíma permitem uma leitura intertextual cruzada pela recorrência de
personagens e situações; quando um personagem de um conto anterior reaparece em
outro, o leitor precisa recuperar o contexto pregresso à luz do novo para
promover tal leitura. Assim, a coletânea funciona não apenas como um apanhado
de textos, mas de forma algo homogênea.
Sobre
intertexto e o título da coletânea, Máquina
Macunaíma, cabe observar que a máquina, em Macunaíma, de Mário de Andrade, alegoriza a indústria e a oposição
que ela apresenta à natureza. Vendendo-se às máquinas, Macunaíma perde a chance
de estabelecer uma cultura nacional. O herói sem caráter, por fim, chega à
conclusão de que os papéis se inverteram na vida urbana: os homens são máquinas
e as máquinas são homens (esta conclusão a que chega o personagem é a epígrafe
da coletânea). Bras, associando “máquina” a “Macunaíma”, traz não o conflito de
Macunaíma entre uma cultura que tenta
se estabelecer e uma circunstância que a barra, mas de culturas, ou formas de
apreender a realidade, associadas de forma harmoniosa ou não. Máquinamacunaíma,
o homem e a máquina juntos: boa ou não, é a circunstância que serve de motriz à
transfiguração ficcional de Bras.