sexta-feira, 31 de maio de 2013

Estrela Radiante, de Fabiana Servilha


Estrela Radiante é um curta metragem dirigido por Fabiana Servilha, também autora do roteiro. Estrelado por André Ceccato, Fábio Neppo e Valdano Sousa, além da participação especial de Débora Muniz, o curta já começou seu percurso pelos festivais de cinema no Brasil e no exterior. Pelo que me consta, é o primeiro filme de ficção científica brasileiro dirigido por uma mulher.

Servilha possui dois outros filmes no currículo: Aqueles Olhos (premiado no Cinefantasy 2010), que guarda semelhanças com o segmento introdutório do obscuro longa Spookies (1986), de Brendan Falkner e Thomas Doran; e Vontade (premiado na mostra Espantomania e no Festival ArtDeco de Cinema), um tenso curta de surpreendente desfecho.

Fabiana Servilha




Tecnicamente impecável, Estrela Radiante já recebeu um prêmio, de Melhor Ator no 5º Festival ArtDeco de Cinema. Atribuído ao protagonista André Ceccato, o prêmio é merecido: o ator entrega uma performance sólida, consistente.

André Ceccato

Diz a sinopse oficial do curta: "Um homem do campo tem sua vida transformada de uma forma assustadora após ver uma estrela cair do céu. Perdido, ele conta com a ajuda de um único amigo para achar uma solução para sua terrível condição."

O enredo faz referência, de certa forma, ao segundo episódio do filme de antologia Creepshow (1982), dirigido por George Romero e roteirizado por Stephen King: em ambos um homem simples do campo se depara com um estranho objeto caído do céu. No filme de Servilha, contudo, há o eco de um trágico evento transcorrido no Brasil há alguns anos.

A fascinação do protagonista pelo objeto cadente (que lhe parece uma "estrela radiante"), bem como as consequências funestas do contato, remetem ao caso do Césio 137. Em setembro de 1987, em Goiânia, o isótopo radioativo encontrado no interior de um aparelho de radioterapia abandonado contaminou centenas de vítimas. O belo brilho da cápsula de Césio 137, tomado como mágico, atraiu o interesse dos que com ela travaram contato. Propagou-se, assim, a contaminação.

Além dos elementos que enquadram o filme na ficção científica, há outro mais relacionado ao fulcro supersticioso ou místico brasileiro. Como o curta apenas começou a ser enviado aos festivais de cinema e ainda vai ser visto por muitos, é melhor evitar spoilers. Cabe adiantar, porém, que o elemento místico aproxima Estrela Radiante do horror. O curta não chega a habitar o terreno indefinido entre esse gênero e a ficção científica, mas coloca ambos lado a lado, em certo desarranjo. Configura-se formalmente um abismo entre uma concepção animista da realidade, ligada à magia e à superstição, e outra científica (falo de ciência ficcional, já transformada em matéria para a ficção científica). O desfecho do filme mostra qual dessas concepções prevalece, qual gênero é acessório à narrativa e qual assume o primeiro plano.

Fábio Neppo

O Ficção de Gênero vai acompanhar a trajetória de Estrela Radiante pelos festivais afora; aguarde novidades.

TEASER

TRAILER

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Splash Page: caça-níqueís X função narrativa

Em seu controverso estudo Superdeuses, Grant Morrison fala de uma peculiaridade do mercado norte-americano de quadrinhos dos anos 90:

Os artistas descobriram que podiam multiplicar por dez o quanto ganhavam por página ao vender as artes originais a colecionadores, e, quanto mais icônica a página, mais dinheiro rendia. Uma imagem de página inteira ou de página dupla do personagem ou equipe-título era o máximo. Uma imagem similar de um novo personagem ou nova equipe era quase tão boa – melhor ainda se a nova equipe ganhasse sua própria série. Logo a Image Comics começou a parecer um catálogo de pinups. Rob Liefeld, em particular, desenvolveu um estilo narrativo hipercinético em que uma nova superequipe era apresentada praticamente a cada página dupla.

Trata-se de uma situação extrema de criação ditada pelo mercado, popularizada pela Image Comics mas também de certo alcance em outras editoras da época. Não apenas as narrativas tinham que ser rápidas e pueris para alcançar retorno imediato nas vendas; também a própria forma se adaptava à vontade dos criadores de lucrar com o comércio das artes originais. Mesmo a mais tradicional DC Comics teve sua parcela de culpa, com publicações alinhadas a essa duvidosa tendência. Exemplo é a Mulher Maravilha dos pincéis do brasileiro Mike Deodato Jr. – desenhista que muito amadureceu desde então, cabe dizer.


Mulher Maravilha de Deodato

Muito tem se falado acerca da inaptidão de Rob Liefeld (um dos fundadores da Image Comics) no desenho de figuras humanas. De fato, ele não tem mínimas noções de anatomia, mas há um problema ainda maior em sua produção, relacionada à narrativa: seus quadrinhos parecem uma compilação de pinups e, assim, abolem o movimento próprio da nona arte. Esse problema é compartilhado por outros de seus sócios da época, em particular Todd Macfarlane – ótimo desenhista, mas péssimo narrador.

Double-Spread Page de Youngblood, de Rob Liefeld

Splash Page é um termo que, no jargão dos quadrinhos, designa uma página composta por um único painel (“painel” quer dizer um “quadrinho”, no caso), representando um personagem, um grupo deles ou uma ação de impacto. São comumente usadas nas páginas de abertura, mas também podem ser encontradas no interior quando assim a história exigir. Se ocupam duas páginas ao invés de uma, são chamadas de Double-Page Spread - estas são, portanto, splash pages anabolizadas.

Liefeld é o exemplo mais exagerado da tendência noventista de transformar quadrinhos em “catálogos de pinups” (tendência que ainda persiste aqui e ali). Banalizava sobremaneira o uso das splash pages em prol de uma efêmera contingência mercadológica, tanto que o recurso se via inutilizado.

Jack Kirby foi o primeiro a usar com insistência splash pages, num período em que o recurso não era comum. Sua produção, na Marvel, na DC e em diversas outras editoras há muito fechadas mostram diversas das funções que as splash pages podem assumir narrativamente: apresentar com impacto um novum surpreendente, representar uma ação violenta desmedida, catalizar o efeito catártico da compensação (ou seja, pôr em relevo o momento em que o protagonista finalmente consegue prevalecer às circunstâncias adversas ou ao vilão), entre outras. Para que tudo isso se dê plenamente, contudo, é necessário parcimônia: rechear uma história de splash pages dilui o efeito impactante que deveria acompanhá-las.

Double-Page Spread de Kirby, em Os Eternos

Publicado neste mês em um encadernado pela Panini, o Monstro do Pântano de Len Wein e Bernie Wrightson fornece um belo exemplo de uso eficiente do recurso. Cada história de vinte e três ou vinte e quatro páginas possui no máximo três splash pages: a página de abertura e uma ou duas no interior, reservadas ao clímax ou a uma importante revelação (como os detalhes do rosto do protagonista, em Swamp Thing #1). O impacto se mantém, a narrativa se beneficia do recurso ao invés de sucumbir a ele.

Nas bancas


Impossível falar no assunto sem lembrar de A Morte do Superman, de Dan Jurgens, cuja edição derradeira é integralmente composta por splash pages. Embora a história possa ser criticada por diversas motivos (e o foi), no uso do recurso não há problema. Toda a grandiloquência acaba por se mostrar desculpável e até mesmo necessária para narrar o fim (previsivelmente temporário, é verdade) do primeiro super-herói, aquele responsável por criar todo um gênero. Não sendo o caso, seria um excesso. O mesmo, é claro, não se pode dizer das splash pages de Liefeld, forradas de personagens destinados a serem esquecidos até o mês seguinte.

Double-Page Spread que encerra A Morte do Superman

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Estreia do curta de horror "Red Hookers", de Larissa Anzoategui


O curta de terror Red Hookers, dirigido por Larissa Anzoategui, roteirizado por mim e estrelado pela ex-atriz pornô e atual scream queen Monica Mattos, mais Jacqueline Takara e Ju Calaf, já tem data de estreia: vai ser no festival Pop Porn 3, Domingo 09/06, 01:00h da madruga (ou seja, madrugada de sábado para domingo).
O título, como deve dar para perceber, faz um trocadilho auto-explicativo com o conto "Horror em Red Hook", de Lovecraft.



Programação do evento aqui.

Sinopse e ficha técnica:
Karen (Monica Mattos), uma jovem ordeira e estudiosa, começa a perceber que há algo de terrivelmente errado com sua irmão Karina (Jacqueline Takara) ou, como é conhecida na noite, Cherry. Para descobrir o que se passa com ela e resgatá-la da misteriosa Lady Shub (Ju Calaf), Karen terá que remexer nos segredos do bordel Red Hookers. Nesse ambiente hostil, horror e depravação a aguardam.



Faces de Brontops em "O Grito do Sol Sobre a Cabeça"

(Resenha escrita por ocasião do lançamento do livro, em 2012)
À antologia de contos de diversos autores é demandada uma coesão algo frouxa, no que diz respeito à reunião de diferentes formas de abordar um mesmo tema ou um mesmo gênero. Esse é o papel que cabe a ela: pôr em cena distintas expressões literárias que se complementam para fornecer um quadro amplo e heterogêneo. Já na coletânea de contos de um único autor, a coesão a ser buscada é maior; embora cada conto seja, como na antologia, autônomo em relação ao conjunto, predomina uma única expressão literária, manifesta em tantas facetas quanto seu alcance permitir.

É o caso de O Grito do Sol Sobre a Cabeça, de Brontops Baruq. De um lado, há traços recorrentes, que percorrem toda a coletânea; de outro, há a multiplicidade formal que impede uma leitura automatizada. Uma das recorrências é a filiação genérica à ficção científica; a coletânea se constitui por meio do manejo dos paradigmas do gênero. A relação com o gênero não é superficial, ou seja: não depende apenas do uso de imagens associadas ao gênero, como a espaçonave e o alienígena, mas do efeito que a ficção científica pode provocar no leitor.
  
Recorrendo a Darko Suvin, sinteticamente se pode dizer que a ficção científica, por meio de uma apresentação distanciada, pode promover uma articulação cognitiva, de cunho crítico, da realidade aparente. Os parâmetros aqui adotados não parecem em assonância com alguns dos dizeres da orelha do volume, assinada por Caio Silveira Ramos: “‘Brontops’ não é um dinossauro, e equivoca-se quem o classifica como autor de ficção científica: se em seus textos há ‘ficção fantástica’, ele (ou alguém) se utiliza do rótulo ‘científica’ talvez para atrair incautos fãs de Star Wars. No fundo, Brontops vale-se do universo fantástico para expor sua desilusão sobre política, religião, moralidades e a (des)necessidade de deus”.

De início, Ramos parece tomar “ficção científica” como sinônimo de “ficção fantástica”. Embora experimentemos, hoje, um momento em que as fronteiras entre diferentes gêneros se revelam mais fluidas (com relação à ficção científica, à fantasia e ao horror, elas sempre o foram em alguma medida), a crítica não deve simplesmente ignorá-las: fazê-lo equivale a ignorar as particularidades da própria ficção de gênero e de sua tradição. Esse é um problema menor, contudo, frente ao que é proposto em seguida: que Brontops apenas usa o rótulo para atrair “incautos fãs de Star Wars”.

A relação com a ficção científica não se daria de forma remotamente significativa se a coletânea apenas se filiasse ao gênero de forma enganosa, ao invés de retrabalhá-lo em seus paradigmas constituintes. Ramos também parece tomar a ficção científica como banal e escapista, ao propor que Brontops apenas usa um rótulo com o interesse de, na verdade, “expor sua desilusão sobre política, religião, moralidades e a (des)necessidade de deus”. Sugere que é preciso escapar do gênero para dizer algo de profundo; aparentemente, foge à sua percepção que a ficção científica oferece essa possibilidade, desde que manipulada satisfatoriamente.

O texto da orelha parece repetir uma estratégia que já fracassou em diversos momentos da historiografia da ficção científica, da antologia Science Fiction for People who Hate Science Fiction (1966), organizada por Terry Carr, ao posicionamento crítico do emblemático autor da Geração GRD Fausto Cunha, que oscilava do elogio à condenação da ficção científica no intuito de apresentá-la a um contexto de recepção conservador – problema que a produção ficcional desse autor, ao contrário da crítica, não deixa entrever.

Mas cuidemos dos contos que, afinal, são o objeto desta resenha. Alguns deles, cujas particularidades podem delimitar o teor da coletânea, foram escolhidos. Dos dezenove, oito serão brevemente comentados, o que basta para fornecer uma noção geral da coletânea aos seus potenciais leitores e para embasar futuras abordagens críticas dela.

O volume principia com o breve “Extensão”. O texto é calcado no contraponto entre o familiar e o distanciado que é característico da ficção científica, colocando em cena uma questão recorrente na produção do gênero dos países à margem dos padrões hegemônicos de desenvolvimento, a saber: o desenvolvimento tecnológico não pode sanar, por si só, as mazelas do homem. Ao motivo recorrente, contudo, é acrescentada uma visada irônica que particulariza o conto: o apego ao apuro técnico, representado por um telefone celular ao qual o protagonista se agarra com todas as forças, transfigura uma paisagem edênica em ambiente de desolação.

Os diálogos, entremeados por breves marcações de perspectiva cambiante, predominam e constituem a narrativa de “{os quereres}”, em uma aproximação formal do texto do teatro. Os detalhes acerca do mundo futuro em que o conto é ambientado, assim, são fornecidos de passagem, integrados ao diálogo. O enredo trata de um casal que planeja ter um filho e se vê diante da opção de escolher como a criança será, do sexo à cor dos olhos. Sem o interesse de investigar as intenções ou as influências de Baruq, é possível observar que o elogio ao acaso e o tema do matrimônio no futuro, bem como o contraponto entre o artificial e o natural socialmente construído remetem ao conto “Um casamento perfeito”, de André Carneiro, publicado em sua coletânea O Homem que Adivinhava.

“Zênite, nadir e drosófila” associa o domínio exercido pela indústria cultural ao episódio bíblico de Abraão. Neste, Deus pede a Abraão que sacrifique seu filho, e o pesaroso homem providencia a execução. Uma voz grossa vinda dos céus, contudo, o interrompe no momento derradeiro, dizendo tudo aquilo se tratar de um “teste de fé”. Aprovado, Abraão e seus herdeiros recebem a recompensa divina. No conto de Baruq, um homem tem seu filho selecionado para execução pública em um reality show. A cada ano, o programa sorteia alguém para o sacrifício, e questionar suas regras está além do alcance do pai – como as decisões de Deus, também as da mídia são soberanas e inquestionáveis. Além de simuladamente extrapolar tendências em curso (os efeitos nocivos da indústria cultural e a perda dos limites entre o público e o privado, por exemplo), o conto volta um olhar irônico à obediência cega e acrítica que, no episódio cristão, é louvável e digna de recompensas.

“Pausa” é o conto da coletânea mais apegado à narrativa linear e, por assim dizer, tradicional. Cercado de contos que experimentam de maneira mais ousada com a forma, acaba por funcionar de fato como uma pausa. Possui teor aventuresco e, bem conduzido, é dotado da agilidade que a narrativa de peripécias demanda. No enredo, ciborgues guerrilheiros na fronteira mexicana, em um futuro não desejável.

“(Ficção especulativa)” toma como tema a transfiguração estética da realidade, com teor metanarrativo. O enredo é narrado em mais de uma instância, se ajustando às diferentes possibilidades oferecidas ou exigidas por duas formas narrativas, o cinema e a literatura. Põe em cena a expectativa do público, por vezes calcada em parâmetros estanques, e o artista que se vê na obrigação de adequar sua arte a parâmetros pré-estabelecidos.

“(História com desenho e diálogo)” é, talvez, o conto mais bem sucedido da coletânea. Um resumo do enredo pode dar a impressão de se tratar de uma história de invasão alienígena como tantas outras, mas a forma, ao promover uma mudança de perspectiva, precisa ser levada em conta. O conto é constituído de descrições de desenhos infantis entre parênteses, seguidas de frases curtas com dicção também infantil explicando de que se trata a ilustração. Dessa maneira, por meio do olhar da criança e de sua peculiar expressão, são dados a conhecer a invasão alienígena e suas consequências trágicas. O conto já foi publicado no exterior, evento raro em se tratando de textos de ficção científica brasileira – um sinal de que seus predicados já alcançaram algum reconhecimento.

“Buraco no céu ou 22 de dezembro de 2012” implicitamente elabora uma crítica (ou um questionamento) da religião e do apego a ela. Trata-se de uma atípica história de fim de mundo, na qual alienígenas visitam o planeta não com hostilidade, mas com reverência à raça humana que consideram iluminada e sábia. Encarado como perfeito embora ciente da própria imperfeição, o homem parece não ter mais em que se sustentar. A recorrente incapacidade humana de caminhar pelas próprias pernas, relacionada à necessidade da crença em algo superior, é assim posta em cena: desvendado que não há nada acima, o homem tolamente não sabe mais como agir.

“Sésamo, bananas & kung fu” guarda similaridades com o conto que abre a coletânea: carrega a noção de que o avanço tecnológico não é sincrônico ao aumento de benefícios e do bem-estar do homem. Extrapola simuladamente os problemas que adviriam do desenvolvimento da tecnologia de teleporte e, como boa parte dos textos da coletânea, é avesso ao otimismo e ao entusiasmo ingênuos a permear certa parcela da ficção científica.


Embora O Grito do Sol Sobre a Cabeça seja um bem sucedido volume de estreia, não cabe dizer que se trate de um autor promissor; se houve promessa, ela já foi cumprida. Baruq revela domínio nas mais diferentes formas narrativas exploradas na coletânea; todas fluem com eficiência e são permeadas de significativas entrelinhas a serem exploradas pelas vindouras (e, esperamos, numerosas) abordagens críticas. O potencial da ficção científica, em seu efeito de questionar cognitivamente a partir do distanciamento, é explorado de forma plena. Manter os olhos na produção futura de Baruq será uma tarefa e um prazer para os leitores e os críticos que se ocupam da produção literária brasileira, de ficção científica ou não.

terça-feira, 28 de maio de 2013

The Isolator, by Hugo Gernsback

O sujeito abaixo da parafernália é Hugo Gernsback (1884-1967), inventor, escritor bissexto e editor da lendária revista Amazing Stories, a primeira especializada em ficão científica. O nome desse gênero que ele ajudou a modelar, inclusive, é criação sua.
Na foto, talvez o motivo pelo qual Gernsback é lembrado como editor e não como inventor.

Pressupostos

É comum, por parte do público da ficção científica, da fantasia e do terror e etc., o uso do termo “de gênero”. Ainda que a expressão careça etimologicamente de coerência, serve para marcar terreno quando é negado espaço, quando algo é chamado de entretenimento frívolo com base em uma concepção insustentável e empoeirada de arte. Mas fala-se em “literatura de gênero” e “cinema de gênero”, mas não em “quadrinho de gênero”, “série de gênero” ou, menos ainda, “jogo eletrônico de gênero”. Qual o motivo?

Nos quadrinhos, nos games e nas séries televisivas a produção de ficção científica, de fantasia, de horror, de histórias de detetive e policialescas é quantitativamente expressiva. Dessa forma, o “de gênero” se faz algo desnecessário, redundante. É até mesmo difícil encontrar exemplos que não possam ser prontamente enquadrados em algum gênero, conforme compreendido por uma comunidade de fãs.

Mas os exemplos existem, e não devem ser desconsiderados. Nos quadrinhos, por exemplo, às vezes se esquece de que há vida inteligente além dos super-heróis da DC e da Marvel. Conhecer a produção que escapa à pronta categorização genérica não promove, contudo, o uso do nosso “de gênero”. Ou seja, o critério quantitativo não esclarece por completo a circunstância.

No cinema e na literatura ainda predomina uma conformação estética beletrista, comprometida com os padrões instituídos de bom gosto. Que o diga quem produz ou consome ficção de gênero e já teve que enfrentar o conservadorismo vigente em boa parte das discussões acadêmicas sobre literatura ou o pedantismo que contamina os cineclubes mundo afora.

Ignorados ou refutados pela “intelligentsia” (com ênfase nas aspas), os quadrinhos, os games e a produção televisiva em geral não precisam demarcar uma diferença, uma cisão. Justamente por serem ignorados, não se faz necessário marcar terreno; não é preciso dizer “isto é de gênero, não serve para vocês beletristas”.

Não se pode negar que há exceções, como a contemporânea abertura da academia aos estudos da produção de gênero, dos quadrinhos e, numa menor escala, dos games. Trata-se de uma abertura ainda muito tímida, mas que certamente tende a crescer – embora não com a velocidade que esperaríamos.

Aqui no Ficção de Gênero, vou traçar notas sobre essa produção que tem seu espaço negado pelos bastiões do bom gosto. Como esta, serão notas que não têm o interesse de esgotar o assunto ou de assumir objetivos totalizantes. Notas, apontamentos apenas.