sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Wild Cards, editado por George R. R. Martin



Wild Cards é um colossal universo compartilhado, composto por 22 livros e capitaneado por George R. R. Martin. A série é conduzida por uma ampla equipe de autores, alguns deles com destaque na literatura de gênero, como Chris Claremont, Melinda Snodgrass e Lewis Shiner. Comumente chamada de “romance mosaico”, Wild Cards tem uma estrutura narrativa peculiar: compõe-se de contos e romances algo independentes que, quando lidos em conjunto, formam um quadro maior.

A estruturação, embora atípica, não é uma novidade plena. Na literatura, pode ser traçado um paralelo com a narrativa epistolar, aquela composta pelas cartas trocadas entre os personagens (Drácula, de Bram Stoker, e Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, são exemplos). A cada novo segmento há uma mudança no foco narrativo, resultando em um enredo que, visto segundo o ponto de vista de cada personagem, se completa também como um mosaico. Da variação do foco resulta uma história que na verdade é várias histórias. Como em Wild Cards.

A diferença que se coloca entre um caso e outro é bem evidente: na série de livros organizada por Martin a narrativa predominante é em terceira pessoa; na narrativa epistolar, em primeira. Outro ponto que cabe frisar é: as obras epistolares nem sempre apresentam a variação no foco narrativo. Por exemplo: Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, dá a conhecer os escritos do próprio protagonista, mas não do destinatário.

Contudo, o paralelo com a narrativa epistolar talvez não seja o mais imediato. Há outro ainda mais significativo: as ongoing series (as mensais) de super-heróis cujas normas Wild Cards explora e distorce. Como se dá na Marvel e na DC, para ficar nos exemplos mais conhecidos, o título mensal de um personagem dessas editoras se relaciona, às vezes intensamente, com os títulos dos outros. Assim, as narrativas existem em interação, constituindo um universo ficcional amplo, compartilhado.

Também podem ser traçadas relações muito estreitas com uma HQ autocontida, a minissérie em 12 partes Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. Tanto em Wild Cards quanto em Watchmen, há a fragmentação do foco narrativo, há o mosaico, há a tentativa de cunhar um universo de super-heróis que coloca em xeque os parâmetros do gênero, esgarçando-os. No universo de super-heróis tradicional não são exploradas as decorrências culturais, sociais e históricas provocadas pela presença de pessoas com superpoderes – não vemos, por exemplo, a interferência dos supers em guerras reais ou na política interna. Em Wild Cards e Watchmen, há essa preocupação – isso os aproxima mais da ficção científica, na tendência do gênero de abordar o impacto dos nova (as “novidades estranhas” da FC, de acordo com a conceituação de Darko Suvin) na vida do homem.

Os contos do primeiro volume de Wild Cards tratam da detonação de uma bomba alienígena em Nova York, nos anos 40, e das consequências nos decênios que seguem, chegando até o princípio dos anos 80. A bomba liberta sobre a cidade o vírus carta selvagem, que é capaz de matar, provocar deformações ou gerar superpoderes nos afetados. Os deformados são chamados de curingas e fadados a viver em uma periferia assolada pela criminalidade. Causam repulsa ao resto da população e se vêem privados do direito de ir e vir. Os agraciados com superpoderes são chamados de ases e se tornam celebridades ou peões nas mãos do governo norte-americano. Apenas alguns dos ases, como o carismático Tartaruga, escapam desse contexto de exploração midiática ou governamental, configurando-se em sintonia com os super-heróis tradicionais.

Trata-se de um alegoria do preconceito racial, conforme sua conformação norte-americana. O Bairro dos Curingas, de acordo com essa leitura, equivale às periferias com concentração de negros e/ou imigrantes latinos. Recebem pouca atenção do poder público, têm altos índices de criminalidade e são tomados como indesejáveis pelos dominantes WASPs (brancos, anglo-saxônicos e protestantes). Wild Cards volta um olhar significativo, despido de condescendência, à minoria desprovida de direitos: não a caracteriza meramente como vítima, o que conduziria ao paternalismo, mas como composta por pessoas que conseguem enxergar e articular criticamente sua condição de excluídos.





No Brasil, dois derivados de Wild Cards foram publicados nos anos 90: uma excelente minissérie em quadrinhos que adapta segmentos das narrativas literárias; e as páginas anexas do suplemento de RPG GURPS Supers, constituídas de descrições do cenário e fichas dos personagens da série. Nesses derivados, o brasileiro encontrou uma instigante amostra dos livros que, não fosse o sucesso de Game of Thrones, de Martin, talvez não fossem publicados por aqui.




A Editora LeYa, assim, preenche uma lacuna muito incômoda para aqueles que tiveram contato com os quadrinhos ou com o suplemento Supers. É um alívio poder finalmente conferir a qualidade da série em uma edição cuidadosa e visualmente agradável. A tradução, a despeito de um ou outro deslize, não compromete e o texto flui bastante bem em português. Raphael Draccon, o curador da série no Brasil, fez um trabalho de organização muito eficiente que deve se manter nos próximos 21 volumes. Durante os próximos anos (serão publicados três livros anualmente), será um prazer finalmente conhecer o mundo de Wild Cards em toda a sua complexidade e riqueza.

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