quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2012, de Marcello Simão Branco e Cesar Silva



Há nove anos, o Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, de Marcello Simão Branco e Cesar Silva, cuida da produção publicada no País, documentando-a em suas particularidades estatísticas e qualitativas. Por literatura fantástica, aqui, deve-se entender os gêneros que vão além das fronteiras da realidade conforme experimentada pelos nossos sentidos – e não a teorização sobre o fantástico promovida sistematicamente por T. Todorov. O Anuário é publicado, obviamente, no ano seguinte ao tomado como análise – ou seja, o lançado neste ano trata do ano passado, 2012. Para suprir uma carência, o relativamente pequeno alcance da produção nacional de horror, fantasia e ficção científica junto ao público leitor, o foco recai sobre as publicações brasileiras. As traduções de textos estrangeiros, contudo, também são levadas em conta pelos autores.

Tradicionalmente, o Anuário procura cobrir em várias frentes os doze meses que toma como análise. Há a sessão que compila as listas dos prêmios literários nacionais e internacionais, na qual as informações acerca dos premiados são reunidas para constituir uma visão panorâmica das obras e dos autores que se destacaram nas premiações do ano. Medir a repercussão de determinadas obras entre críticos e fãs se torna uma tarefa simples: não é incomum a presença de um mesmo texto em premiações diferentes, assinalando fortemente uma tendência rumo ao cânone particular de cada gênero. Em 2012, por exemplo, tivemos a sintomática premiação do romance Amog Others, de Jo Walton, no Nebula, no Hugo e no British Fantasy.

Também é fixa a sessão de obituários, com informações pontuais sobre a vida e a obra das personalidades – escritores, editores e fãs ilustres – que faleceram no ano. Sem minimizar o impacto das outras perdas, na edição de 2012 o falecimento de Ray Bradbury é o triste destaque: além de uma lista completa das edições publicadas no Brasil e em Portugal, há um texto de fôlego sobre a carreira desse autor tão lido e admirado também pelos brasileiros.

Um dos pontos altos do Anuário é a cuidadosa análise do mercado, com textos embasados em levantamentos estatísticos. O levantamento pormenorizado das publicações do ano não tem paralelos no Brasil, e serve como nenhum outro para análises de tendências do mercado editorial. Graças ao Anuário é possível, por exemplo, afirmar que os últimos anos têm sido singulares para a publicação de literatura fantástica no País, uma vez demarcado numericamente um progressivo crescimento no volume de edições.

O Anuário de 2012 traz, ainda, as habituais resenhas. Auxiliando Silva e Branco frente ao grande volume de obras a serem discutidas, algumas resenhas são assinadas Álvaro Domingues. Não há prejuízo: suas análises possuem equilibradas quantias de informação e de avaliação crítica. No volume do ano estão resenhados, entre outros, Contos do Sul, de Simone Saueressig, Descobrimentos, de João Batista Melo, Estranhas Invenções, organizado por Ademir Pascale, Geração Subzero, organizado por Felipe Pena, O Grito do Sol Sobre a Cabeça, de Brontops Baruq (leia minha resenha dessa coletânea aqui), Kaori e o Samurai sem Braço, de Giulia Moon, Sozinho no Deserto Extremo, de Luiz Brás, Trilhas do Tempo, de Jorge Luiz Calife, e A Máquina Diferencial, de William Gibson e Bruce Sterling.

Acerca das obras escolhidas para análise, algumas palavras sobre mercado e valoração literária vêm a calhar. Embora o Anuário se dedique a uma análise pormenorizada do mercado e de seu momento atual, ele não se subordina ao mercado. Quer dizer, a seleção das obras a serem resenhadas não se deixa orientar acriticamente por listas de “mais vendidos”, mas pelo que cada texto tem de potencialmente singular. Mostra disso é que a maioria das resenhas são positivas; não parece haver tempo e nem espaço a perder com o que não passa de pastiche servil. Se há críticos rancorosos que preferem cuidar das obras mal realizadas para apontar-lhes os problemas, há outros que preferem voltar os olhos principalmente para a literatura que alcança suas potencialidades – no mais, o próprio silêncio pode ser um juízo crítico incisivo como poucos. Os autores do Anuário parecem fazer parte do segundo tipo, fomentadores da literatura que se realiza plenamente.

Na edição de 2012, a “personalidade do ano” escolhida para uma longa entrevista, concedida a Branco e Silva, é Simone Saueressig. Os motivos apontados são a qualidade de seus textos e sua alta produtividade em 2012 (três livros e contos em antologias). A escolha se justifica na leitura da entrevista, bastante fértil e transcrita de forma a preservar a cadência própria da fala. A conversa é fundamentalmente sobre a escrita da autora, das primeiras tentativas aos textos mais maduros de hoje, e rende bastante.

O volume traz ainda a costumeira seção “Efemérides”, onde eventos importantes da história da ficção científica, do horror e da fantasia brasileiros são registrados e analisados, com uma janela cronológica mínima de vinte anos. Há resenhas de textos do passado, como o clássico Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga.

Por fim, encerra a edição o ensaio do “Convidado especial” Ivan Carlo Andrade de Oliveira, “A ficção científica nas histórias em quadrinhos brasileiras”. O pesquisador corresponde ao que normalmente se espera da sessão: um discurso mais inclinado para a pesquisa acadêmica e um teor que escapa do âmbito da crítica militante.

O Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2012 mantém o nível das edições anteriores e, como elas, se oferece como um instrumento indispensável para aqueles interessados em conhecer a ficção científica, o horror e a fantasia em suas particularidades nacionais. Não se trata de uma análise fria e distanciada do mercado brasileiro, mas comprometida com seu avanço e desejosa de que esse avanço se dê de forma saudável. Como os anuários passados, é uma edição que serve tanto aos pesquisadores quanto a qualquer um que procure indicações seguras de leitura, embasadas em um conhecimento da literatura fantástica pouca vezes visto.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Mars Attacks!, da Topps



Mars Attacks! (1996), deTim Burton, é uma comédia escrachada, com interpretações exageradas, diálogos nonsense e gags físicas. Nada poderia ser mais distante do teor a permear os violentos trading cards  que inspiraram o filme, lançados em 1962 e retomados em 1994. Em sua primeira encarnação desenhados por Wallace Woods e Norman Saunders, os cards não possuíam um humor que se assumia como tal. Pelo contrário: com um espírito genuinamente pulp, a narrativa sequencial parece se levar a sério, por mais exagerado, absurdo ou risível que seja seu desenrolar – isso se dá no plano da recepção, não da confecção; pouco importa, portanto, se essa era a intenção dos autores.
O tom sensacionalista confere um ar de grandiosidade e, ao mesmo tempo, dá uma piscadela: não há um desarranjo entre o narrado e sua forma? Ao leitor cabe o sense of wonder, o horror ou a risada? Ou os três? É como se o leitor não soubesse que efeito o texto (a imagem e a legenda de cada card) espera dele. Trata-se do espírito pulp ainda hoje intacto em narrativas das mais distintas, em gêneros como terror e super-heróis.



Indecisão ou ambivalência quanto aos efeitos que uma obra pode provocar são valores mais produtivos que a certeza – ou, neste exemplo, mais produtivos que o escracho. O problema não é a pouca fidelidade de Burton ao material original (ele é o autor de seu filme e pode fazer com ele o que acha que deve), mas sua opção por um registro menos amplo e, assim, aquém. A opção pode ser compreendida de acordo com as questões de status artístico: não cabe a um diretor consagrado deslizar para o pulp; para remexer esse tipo de material, seria preciso assumir explicitamente que nada está sendo levado a sério.


Abaixo, todos os cards de Mars Attacks! da Topps, em sua primeira encarnação (clique no botão direito do mouse e na opção "abrir imagem em nova guia" para ver maior):









sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Wild Cards, editado por George R. R. Martin



Wild Cards é um colossal universo compartilhado, composto por 22 livros e capitaneado por George R. R. Martin. A série é conduzida por uma ampla equipe de autores, alguns deles com destaque na literatura de gênero, como Chris Claremont, Melinda Snodgrass e Lewis Shiner. Comumente chamada de “romance mosaico”, Wild Cards tem uma estrutura narrativa peculiar: compõe-se de contos e romances algo independentes que, quando lidos em conjunto, formam um quadro maior.

A estruturação, embora atípica, não é uma novidade plena. Na literatura, pode ser traçado um paralelo com a narrativa epistolar, aquela composta pelas cartas trocadas entre os personagens (Drácula, de Bram Stoker, e Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, são exemplos). A cada novo segmento há uma mudança no foco narrativo, resultando em um enredo que, visto segundo o ponto de vista de cada personagem, se completa também como um mosaico. Da variação do foco resulta uma história que na verdade é várias histórias. Como em Wild Cards.

A diferença que se coloca entre um caso e outro é bem evidente: na série de livros organizada por Martin a narrativa predominante é em terceira pessoa; na narrativa epistolar, em primeira. Outro ponto que cabe frisar é: as obras epistolares nem sempre apresentam a variação no foco narrativo. Por exemplo: Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, dá a conhecer os escritos do próprio protagonista, mas não do destinatário.

Contudo, o paralelo com a narrativa epistolar talvez não seja o mais imediato. Há outro ainda mais significativo: as ongoing series (as mensais) de super-heróis cujas normas Wild Cards explora e distorce. Como se dá na Marvel e na DC, para ficar nos exemplos mais conhecidos, o título mensal de um personagem dessas editoras se relaciona, às vezes intensamente, com os títulos dos outros. Assim, as narrativas existem em interação, constituindo um universo ficcional amplo, compartilhado.

Também podem ser traçadas relações muito estreitas com uma HQ autocontida, a minissérie em 12 partes Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. Tanto em Wild Cards quanto em Watchmen, há a fragmentação do foco narrativo, há o mosaico, há a tentativa de cunhar um universo de super-heróis que coloca em xeque os parâmetros do gênero, esgarçando-os. No universo de super-heróis tradicional não são exploradas as decorrências culturais, sociais e históricas provocadas pela presença de pessoas com superpoderes – não vemos, por exemplo, a interferência dos supers em guerras reais ou na política interna. Em Wild Cards e Watchmen, há essa preocupação – isso os aproxima mais da ficção científica, na tendência do gênero de abordar o impacto dos nova (as “novidades estranhas” da FC, de acordo com a conceituação de Darko Suvin) na vida do homem.

Os contos do primeiro volume de Wild Cards tratam da detonação de uma bomba alienígena em Nova York, nos anos 40, e das consequências nos decênios que seguem, chegando até o princípio dos anos 80. A bomba liberta sobre a cidade o vírus carta selvagem, que é capaz de matar, provocar deformações ou gerar superpoderes nos afetados. Os deformados são chamados de curingas e fadados a viver em uma periferia assolada pela criminalidade. Causam repulsa ao resto da população e se vêem privados do direito de ir e vir. Os agraciados com superpoderes são chamados de ases e se tornam celebridades ou peões nas mãos do governo norte-americano. Apenas alguns dos ases, como o carismático Tartaruga, escapam desse contexto de exploração midiática ou governamental, configurando-se em sintonia com os super-heróis tradicionais.

Trata-se de um alegoria do preconceito racial, conforme sua conformação norte-americana. O Bairro dos Curingas, de acordo com essa leitura, equivale às periferias com concentração de negros e/ou imigrantes latinos. Recebem pouca atenção do poder público, têm altos índices de criminalidade e são tomados como indesejáveis pelos dominantes WASPs (brancos, anglo-saxônicos e protestantes). Wild Cards volta um olhar significativo, despido de condescendência, à minoria desprovida de direitos: não a caracteriza meramente como vítima, o que conduziria ao paternalismo, mas como composta por pessoas que conseguem enxergar e articular criticamente sua condição de excluídos.





No Brasil, dois derivados de Wild Cards foram publicados nos anos 90: uma excelente minissérie em quadrinhos que adapta segmentos das narrativas literárias; e as páginas anexas do suplemento de RPG GURPS Supers, constituídas de descrições do cenário e fichas dos personagens da série. Nesses derivados, o brasileiro encontrou uma instigante amostra dos livros que, não fosse o sucesso de Game of Thrones, de Martin, talvez não fossem publicados por aqui.




A Editora LeYa, assim, preenche uma lacuna muito incômoda para aqueles que tiveram contato com os quadrinhos ou com o suplemento Supers. É um alívio poder finalmente conferir a qualidade da série em uma edição cuidadosa e visualmente agradável. A tradução, a despeito de um ou outro deslize, não compromete e o texto flui bastante bem em português. Raphael Draccon, o curador da série no Brasil, fez um trabalho de organização muito eficiente que deve se manter nos próximos 21 volumes. Durante os próximos anos (serão publicados três livros anualmente), será um prazer finalmente conhecer o mundo de Wild Cards em toda a sua complexidade e riqueza.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

The Abomination (1986)




O horror pode ser compreendido como um gênero que, tematicamente, põe em cena conflitos entre o velho e o novo, entre o conservador e o dinâmico, entre as gerações passadas e as atuais ou vindouras. Trata-se de um ponto constitutivo mas não condicional do gênero – ou seja, pode ajudar a constituir determinada obra mas não é condição para que um filme seja enquadrado ou não no gênero; o elemento pode estar ausente. O topos da assombração, dos mortos incorpóreos que por um motivo ou outro voltam para atormentar os vivos, é dos exemplos mais claros. Das raízes góticas à reinvenção promovida por Stephen King em O Iluminado e Christine, temos diante de nós vivos que têm suas energias minadas por seres (ou, em King, impressões deixadas por seres antes viventes) cujo tempo já passou, e que não têm mais o direito de caminhar sobre a Terra. São forças, nesse sentido, intrinsecamente retrógradas e avessas ao dinamismo que acompanha a vida.

Isso também se observa na frequente contraposição entre inocente e conspurcado, puro e impuro. Tomemos dois exemplos de períodos afastados. Em Drácula (1897), de Bram Stoker, o secular personagem título emerge de seu atrasado território para manchar a pureza de mocinhas incautas; em Hellraiser (1986), dirigido por Clive Barker, o tio depravado da protagonista é o responsável pela presentificação de forças do além imorais e desagregadoras. (No romance do qual o filme é uma adaptação, de autoria do próprio Barker, a protagonista não é aparentada ao depravado Frank, mas a diferença entre suas idades também é grande.) Ora, não é exagero dizer que Drácula e Frank são velhos pervertidos que ferem a pureza dos jovens – ou de qualquer outro que cometa a juvenil inocência de lhes dar espaço para agir.

Para falar desse ponto, A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), de Wes Craven, é paradigmático. Freddy Krueger é um homem da geração pregressa à dos protagonistas, queimado vivo pelo povo de Springwood depois de ter matado crianças da cidade. O personagem retorna nos pesadelos dos jovens de Springwood, como algo recalcado pelos pais que volta para atormentar os filhos. Alegoriza-se, assim, os erros e as frustrações dos progenitores que são repassados inadvertidamente à prole. A negação não se sustenta, e o que foi recalcado há de voltar – a carga freudiana do enredo salta aos olhos.

Acerca do contraponto entre inocente (jovem) e conspurcado/conspurcador (velho), cabe mencionar o figurino patentemente demodé de Freddy Krueger. Ao contrário dos jovens protagonistas, com roupas e cortes de cabelo afins à moda dos anos 80, Krueger usa calças puídas, um suéter listrado de vermelho e verde e um chapéu de modelo ultrapassado. Já na vestimenta ele é algo vindo de um passado superado, que à primeira vista não tem mais espaço.


A inclinação de Freddy Krueger à pedofilia (por definição, a conspurcação de uma criança inocente por obra de um adulto) não é explicitada, mas fortemente implícita. O comportamento lascivo do personagem sugere que ele fazia mais do que matar as crianças da cidade. Toda a expressão corporal de Robert Englund quando se aproxima das vítimas ajuda a cunhar essa lascividade. Além disso, a clássica cena em que Krueger lambe a boca da protagonista Nancy Thompson através do telefone indica a carga sexual perturbadora que o personagem carrega.



The Abomination (1986) é um longa metragem filmado em vídeo e muito timidamente lançado apenas nas locadoras norte americanas. A direção e o roteiro são de Bret McCornick, que dirigiu mais de uma dezena de filmes baratos de horror e ficção científica e hoje ainda atua como produtor. Trata-se de um gore de baixíssimo orçamento que, como é comum em produções do tipo, aposta em soluções criativas para driblar a falta de recursos. Mesmo levando isso em conta, há problemas que poderiam ter sido evitados.


O primeiro deles: o filme começa com uma montagem de suas cenas mais violentas e impactantes, o que atrapalha em muito o andamento da narrativa; a transformação pela qual vai passar o protagonista, bem como o agente dela, são entregados de pronto já nos primeiros minutos, antes que o enredo propriamente dito comece. Outro problema: talvez para preencher lacunas nas cenas que careciam de áudio, uma redundante narração em off foi sobreposta. Em poucos momentos a narração vai além de explicitar o que já é óbvio, e o recurso irrita logo de início. Ainda que o resultado final do longa seja positivo, a falta de dinheiro típica do cinema independente (e underground, o que nem sempre é a mesma coisa) precisa ser levada em conta para que as deficiências técnicas não entrem no caminho do trabalho valorativo.

O protagonista, um jovem correto e cumpridor dos deveres que lhe são atribuídos, se incomoda com o fervor religioso de sua velha e cancerosa mãe. Fanática, desenvolveu uma admiração desmedida por um pastor televisivo picareta. Boa parte dos discursos do pastor que são mostrados alertam para uma vindoura “abominação” mencionada na Bíblia, um mal capaz de trazer o apocalipse. A velha passa horas diante de seu televisor assistindo ao pastor e fumando cigarros, e não perde nenhuma oportunidade de convencer o filho a se juntar ao culto. Ele, entristecido com a vida que a mãe leva, não cede.


Certa noite, sozinha em casa, a mãe ouve ansiosa o pastor prometer curar o câncer dos espectadores. Pede que todos os cancerosos a ouvi-lo coloquem as mãos sobre o televisor e orem junto com ele. Terminada a oração, a mãe sente-lhe os efeitos: é atacada por uma tosse forte que só para quando ela cospe no chão o tumor que tinha alojado no pulmão. Joga-o no lixo da cozinha e, milagrosamente curada, adormece. Mais tarde, o filho retorna do cinema com a namorada e, estranhamente sem notar o tumor ainda pulsante e claramente visível no lixo, se recolhe. O tumor, então, rasteja como um ser vivo para a cama do jovem e entra-lhe pela boca.


A partir de então, o comportamento do jovem se altera drasticamente, e ele age como que possuído pela abominação de que falava o pastor televisivo. Cospe fragmentos do mal que habita seu corpo e os espalha pela casa: embaixo da cama, no armarinho do banheiro, atrás dos móveis da cozinha. Alimentada com carne humana, a monstruosidade cresce absurdamente. O jovem mata todos os que encontra pela frente para alimentar a abominação, inclusive sua própria mãe, ela que se considerava imune ao mal.






Apesar de todos os seus defeitos, o longa tem uma carga alegórica digna de nota – além dos efeitos especiais práticos de encher os olhos, é claro. A abominação é a hipocrisia materializada, o moralismo de fundo religioso que dana os que estão ao seu alcance. O filme trabalha de forma única o contraponto entre o velho e o novo, o conservador e o dinâmico: a fonte de ameaça vem do corpo ressequido de uma religiosa fanática, contaminando a geração seguinte a ponto de mergulhar a todos na violência irracional e injustificada. São as frustrações de outrora, arcaicas e arcaizantes, que ressurgem para assombrar o hoje.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Máquina Macunaíma, de Luiz Bras


Não vai ser fácil encontrar o novo livro de Luiz Bras, Máquina Macunaima. Contrabandeados de outra realidade dimensional, chegaram à nossa apenas 50 exemplares. Dadas as patentes qualidades do volume, podemos lamentar que o livro não tenha sido publicado em nossa dimensão ou, melhor, agradecer que ao menos alguns exemplares tenham passados incólumes pela transição de uma realidade a outra.
Lendo o autor, chego a duvidar que Bras seja nativo de nosso plano dimensional. O outro plano, aquele onde Máquina Macunaíma foi publicado, talvez tenha, ele sim, dado origem ao atípico autor de ficção científica e fantasia. É o que me dá a entender um dado biográfico encontrado em seus livros: ele teria nascido em uma cidade chamada Cobra Norato, no Mato Grosso do Sul. Ora, sei bem que por aqui no MS não existe uma cidade com esse nome. Na nossa realidade, não; na de Bras, talvez. (Em seu blog pessoal, o autor volta e meia fala sobre sua cidade natal; vale conferir.)
No novo livro, ele parece continuar a desenvolver uma proposta afim à de Nelson de Oliveira em projetos como a antologia de contos Futuro Presente (2009) e a série Portais, que teve alguns de seus contos compilados em um volume único, Todos os Portais: Realidades Expandidas (2012). A proposta de Oliveira, na organização dessas antologias, é aliar a auto-intitulada literatura mainstream, definida e delimitada por critérios formais, à literatura de gênero, por critérios temáticos. Isso, notemos, não demanda obrigatoriamente uma aderência ao preconceito frequente de que a literatura de gênero não dá atenção à forma; apenas que ela não é reconhecida como tal pela forma. Não por acaso, Nelson de Oliveira é o autor que cede suas mãos para que Bras escreva em nossa realidade e possa nela atuar.



Máquina Macunaíma é uma progressão natural do Bras visto em, por exemplo, Paraíso Líquido (2010) e Sozinho no Deserto Extremo (2012).É uma coletânea bastante coerente em suas opções formais e temáticas, a forma produtivamente interagindo com o tema e cambiando conforme suas exigências. Tematicamente, a coletânea se alinha à ficção científica contemporânea que incorpora a aversão a verdades absolutas e a incerteza que Freud, Einstein, Heisenberg e outros trouxeram para o pensamento a partir do século XX (tratei do ponto neste ensaio publicado na Zanzalá – Revista Brasileira de Estudos de Ficção Científica). Abaixo, breves notas sobre os contos da coletânea.



“Virtuais”, conto que abre a coletânea, trata de uma crítica já clichê quando se fala na imersão contemporânea em redes sociais e o consequente distanciamento provocado nas relações interpessoais. O olhar ficcional sobre essa válida crítica - embora por demais repetida – a reveste de novidade pela extrapolação e pelo exagero. No conto, se dá de forma literal o afastamento que paradoxalmente acompanha a aproximação no plano virtual. A grafia em itálico, que demarca o que se dá na rede, aparece pouco no começo do texto, mas acaba por prevalecer quando o afastamento entre os personagens se faz absoluto.

O conto seguinte, “Heidegger não voltará jamais”, desde o título nega a aplicação de conceitos pré-moldados ao homem e ao seu comportamento. Heidegger, o filósofo, é conhecido pelas especulações acerca do “ser” e das circunstâncias que condicionam sua existência. No conto, por outro lado, a tentativa de alcançar uma classificação abrangente, totalizante, de seus personagens está fadada ao fracasso. Frente à diversidade e à dúvida (quanto ao gênero sexual, por exemplo), não há como classificar de forma segura os seres com base em seus anseios ou em sua própria condição. Tudo isso numa narrativa policialesca ambientada em um bizarro futuro.

“Onde vivem os monstros” é de interesse para os que acompanham Bras e sua carreira: é ambientado na cidade natal do autor, Cobra Norato. O evento motriz do enredo é a proibição do prefeito ao Museu da Escultura da cidade, depois que um acidente com uma das peças provocou a morte de seu filho. A dor e o incômodo de teor crítico que a arte é capaz de provocar ou despertar são, assim, alegorizados. Diz o narrador: “Quem disse que a função da arte não é apenas entreter e deleitar, mas provocar e inquietar, estava certo. Provocar, inquietar, romper, fraturar a ignorância e o obscurantismo. Quebrar os ossos da ignorância.” Um grupo se organiza pela internet para, protestando, ocupar o museu. Então, o enredo introduz, em um universo ficcional à primeira vista apegado à apresentação realista, um elemento fantástico que acentua a distinção e a troca que pode se dar entre o mundo e sua representação artística.

“Impostor?” traz à cena a dúvida entre real e irreal, natural e artificial, que a ficção científica passou a manejar com maior intensidade a partir da New Wave norte-americana. É ambientado, pois, em um mundo onde as certezas quanto à identidade do próximo se vêem abaladas. Coincidentemente, a New Wave pode ser caracterizada pelo esgarçar da forma narrativa em aliança ao tema da dúvida. Sugere-se uma relação entre Bras e aquele grupo de autores, relação que pode muito render se explorada futuramente em textos críticos – acadêmicos ou não.

“Mecanismos precários” chama atenção pelo desvendar do processo criativo, que é explicitamente dado pelo narrador, em uma voluntária quebra do pacto ficcional. Os personagens e tudo o que o cerca são arquitetados às vistas do leitor, nublando a separação entre o narrador e o autor. Observa-se em primeira mão os seres de papel ganhando uma espécie de vida própria (distinta daquela dos seres palpáveis) e escapando aos desígnios traçados por aquele que narra, o criador. A despeito da tão atípica construção dos personagens, Bras surpreendentemente consegue criar uma empatia do leitor para com eles.

O tópico da identidade em seus limites e deslimites retorna em “O índio no abismo sou eu”. O conto traz à tona um ponto bastante presente na ficção científica produzida à margem dos centros hegemônicos: o desarranjo entre o avanço científico e a quantidade de benefícios trazidos ao homem. A desigualdade que acompanha a distribuição de novas tecnologias, afinal, é mais patente ou fácil de ser observada em um contexto alheio aos padrões de desenvolvimento hegemônicos. Como diz um dos personagens, “o futuro é apenas para quem pode pagar”.

Uma questão de ordem filosófica atormenta a protagonista de “Coisas que a gente não vê todo dia”: o infinito e a natureza do tempo. Seus questionamentos parecem promover mudanças na própria tessitura de sua realidade de jovem outsider, o que conduz a descobertas acerca de sua própria condição. A conclusão do conto chega a um parodoxo que não o é: o tempo tem uma natureza simultaneamente cíclica e infinita; o eterno retorno é também uma eterna mudança.

“Humana, demasiadamente humana” é um atípico conto “de gênero”: a fantasia (relacionada a uma percepção animista de mundo) e a ficção científica (ligada à ciência ou, ao menos, à apreensão cognitiva da realidade) trocam de lugar. No universo ficcional configurado pelo texto, a magia é banal e a tecnologia é a exceção; a magia provoca catástrofes ambientais cósmicas e a tecnologia pode evitá-las. Novamente, a protagonista é uma jovem que não consegue encontrar seu lugar no mundo.

O enredo de “Distrito Federal” guarda semelhanças com o primeiro conto da coletânea: a relação entre o mundo palpável e o virtual se dá com desarranjo; a noção de “real” se vê abalada e crivada de incertezas. Ambientado em Cobra Norato, o texto trata da interferência de um MMORPG na realidade mundana. Como é recorrente em Bras, os personagens principais são marginais, excluídos.

“Os olhos do gato” se dá em um mundo de estrutura matriarcal fortemente militarizada. Nele, as mulheres é que são criadas de acordo com uma perspectiva belicista. O título do conto remete a um rito pelo qual as guerreiras precisam passar para provar sua maturidade: cada uma deve arrancar os olhos do gato que criou, banida a compaixão. O texto, de acordo com uma das leituras possíveis, parece elaborar ficcionalmente a seguinte questão: para neutralizar os conflitos e constituir um mundo igualitário e pacifista, não basta a mera inversão de papéis; é necessária uma mudança profunda de perspectiva (de olhar), para que os mesmos erros cometidos pela sociedade patriarcal não se repitam em outro contexto – uma sociedade matriarcal, no caso do conto.

“Galáxias” é outro texto que lida com arranjos e desarranjos entre o palpável e o virtual. Avatares como Machado, Capitu, Borges e Isaac interagem, reduzidos a arquétipos que um vírus no sistema ameaça destruir. A questão da permanência da literatura quando seu suporte físico é modificado parece ser o tema central do conto.

“Primeiro de Abril: Corpus Christi”, o último conto do livro,se apropria de ícones da cultura pop, deslocando-os de seu contexto original para apresentá-los como que fazendo parte de um indistinto caldo cultural. Personagens como Homem de Lata, Chapeleiro Louco e Mulher Maravilha perdem seus traços distintivos, e o texto não constitui um diálogo propriamente dito com o que foi apropriado. A relação intertextual se vê manca, carente de um apoio maior na cultura pop que é matéria para apropriação. Isso porque o interesse não parece ser discutir os signos em si, mas como a representação midiática (de um lado) e a artística (de outro) podem, apropriando, desfigurar ou transfigurar. É uma proposta afim à de Roberto Drummond em alguns dos contos de A Morte de D. J. em Paris (1975).

Falando nisso, diversos contos de Máquina Macunaíma permitem uma leitura intertextual cruzada pela recorrência de personagens e situações; quando um personagem de um conto anterior reaparece em outro, o leitor precisa recuperar o contexto pregresso à luz do novo para promover tal leitura. Assim, a coletânea funciona não apenas como um apanhado de textos, mas de forma algo homogênea.


Sobre intertexto e o título da coletânea, Máquina Macunaíma, cabe observar que a máquina, em Macunaíma, de Mário de Andrade, alegoriza a indústria e a oposição que ela apresenta à natureza. Vendendo-se às máquinas, Macunaíma perde a chance de estabelecer uma cultura nacional. O herói sem caráter, por fim, chega à conclusão de que os papéis se inverteram na vida urbana: os homens são máquinas e as máquinas são homens (esta conclusão a que chega o personagem é a epígrafe da coletânea). Bras, associando “máquina” a “Macunaíma”, traz não o conflito de Macunaíma entre uma cultura que tenta se estabelecer e uma circunstância que a barra, mas de culturas, ou formas de apreender a realidade, associadas de forma harmoniosa ou não. Máquinamacunaíma, o homem e a máquina juntos: boa ou não, é a circunstância que serve de motriz à transfiguração ficcional de Bras.

sábado, 29 de junho de 2013

Kilgore Trout, um marginal modelar



Kilgore Trout, personagem criado pelo iconoclástico Kurt Vonnegut (1922 - 2007), é um exemplo perfeito de artista posto às margens do sistema literário por questões que escapam ao seu controle. Não à toa, é um escritor de ficção científica. Para os que estão a par da produção brasileira vinculada ao gênero, difícil não traçar paralelos com Trout.

A fortuna crítica de Vonnegut tende a apontar Trout como um alter-ego do autor. Faz sentido, desde que se esqueça o ranço que vem junto com a sempre mal-fadada crítica das intenções – quer dizer, a crítica que se ampara em entrevistas e declarações do autor para traçar considerações sobre a obra. Isso porque Vonnegut, ao contrário de Trout, nunca se referiu à própria produção segundo o rótulo “ficção científica”.

Cabe mencionar que os primeiros trabalhos de Vonnegut podem ser plenamente chamados de ficção científica, já que lidam de forma direta com as convenções do gênero. O aspecto especulativo diminui no decorrer da obra literária de Vonnegut, mas a FC continua a se fazer presente, de uma forma ou de outra.



O que Kilgore Trout põe em cena não se limita à ironia com que um escritor de ficção científica (Vonnegut) retrata seu próprio ofício; estende-se para o gênero como um todo, e mais ainda: para todos aqueles que são excluídos e postos à margem. Kilgore, com todos seus exageros, alegoriza a própria marginalização da ficção científica no sistema literário de valores.

No romance Matadouro 5, de Vonnegut, nos é dado saber que Trout “não pensava em si mesmo como escritor pelo simples motivo que o mundo não havia permitido que ele pensasse em si mesmo desta forma”. Já em Café-da-Manhã dos Campeões, é apontado que, mesmo tendo escrito cento e dezessete romances e dois mil contos, nenhum editor respeitável jamais ouvira falar dele. O personagem é mais do que marginalizado – é invisível para o mundo em que vive. Tão obscura é sua obra literária que ele mesmo precisa garimpar para encontrar seus próprios romances, e raramente a procura é bem-sucedida.
                
O garimpo se dá em lojas de artigos pornográficos, posto que uma editora de revistas de sexo explícito publica os romances de Trout para “dar volume” às edições de fotos de sexo e nudez. Para Kilgore, e aqui temos um exemplo do humor de Vonnegut, “desconcertantes eram as ilustrações escolhidas por seus editores, que não tinham nada a ver com as histórias”. Mesmo num ambiente tão marginalizado e mal-visto, Trout não encontra lugar – seus livros estão destinados a juntar poeira nas lojas de produtos pornográficos.
                
Os brasileiros que de uma forma ou de outra estão em contato com a realidade da ficção científica no País podem compreender muito bem porque Vonnegut escolheu um autor do gênero para retratar o perfeito outsider intelectual.
                
Na ácida crítica de Kurt Vonnegut, que uso é encontrado para os livros de Kilgore Trout? O personagem, no romance Café-da-manhã dos campeões, em dado momento pega carona com um caminhoneiro que fora preso na cidade de Libertyville:

- Bom – continuou o caminhoneiro -, tinham tantos livros em Libertyville que usavam livros como papel higiênico na cadeia. Como eles me pegaram no final de tarde de sexta-feira, a minha audiência só poderia ser na segunda-feira. Assim, fiquei lá no calabouço por dois dias, com nada a fazer além de ler meu papel higiênico. Ainda lembro das histórias que li.
- Hum – fez Trout.
- Aquela foi a última história que li – disse o caminhoneiro. – Meu Deus... isso deve fazer quinze anos. A história era sobre outro planeta. Era uma história maluca. Eles tinham museus cheios de pinturas por todo lado, e o governo usava uma espécie de roleta para decidir o que botar nos museus e o que jogar fora.
De repente, Kilgore Trout ficou zonzo por causa do dejà vu. O caminhoneiro fazendo ele lembrar do início de um livro em que ele não pensava fazia anos. O papel higiênico do caminhoneiro em Libertyville, na Geórgia, era O crupiê-chefe de Bagnialto ou A obra-prima do ano, de Kilgore Trout.

Não é preciso esforço para relacionar o papel higiênico do caminhoneiro com o cânone aleatório do planeta Bagnialto. Os livros de Trout são os que não tiveram sorte na roleta, e que foram jogados fora por critérios críticos aleatórios e preconceituosos.
                
Uma situação pela qual Kilgore passa é particularmente ilustrativa. Em Matadouro 5, o personagem diz, quando perguntado se determinada história sua tinha realmente acontecido: “Se eu escrevesse uma história que não aconteceu de verdade e tentasse vendê-la, iria preso. Isso é fraude. Num exemplo de como o romance de Vonnegut parece apontar para como a atrofia imaginativa do senso-comum impede a compreensão do contexto em que se encaixa a ficção científica, a interlocutora de Trout acredita na brincadeira.

No Brasil, particularmente, a própria constituição do cânone privilegia obras de cunho dito realista, o que alguns entendem como uma sugestão para que a FC seja taxada como má literatura. Não é necessário reclamar a inclusão do gênero no cânone; bastaria que ele fosse julgado pelos traços que lhe são particulares. O mero uso de suporte crítico inadequado configura preconceito (às vezes inadvertido), na medida em que leva a conclusões deslocadas. Em outras palavras: se o texto não é canônico e se constitui mesmo em certo desarranjo com as obras canônicas, como julgá-lo desfavoravelmente por não cumprir os requisitos do cânone?

Vonnegut era também um artista plástico, e desenhou Trout diversas vezes. Vejamos como o autor representou o marginalizado escritor:


Chama a atenção que uma criatura marginalizada como Kilgore Trout possua tantos olhos. Na visão está o privilégio do personagem: enquanto a auto-intitulada alta cultura não enxerga o nicho em que Trout está inserido, nada impede que ele veja tanto outros marginalizados quanto o próprio centro que o ignora. O diálogo entre diferentes nichos culturais, tão caro à ficção científica, só se torna possível por meio da reorganização artística (consciente ou inconsciente) do que cada um dos olhos de Trout capta. É na visão multifacetada que reside o trunfo do personagem.

                
Estendamos a observação para a própria ficção científica. Nutrindo-se de diferentes lugares e atenta a eles, pode ser invisível, mas enxerga bem.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Glória Sombria, de Roberto de Sousa Causo



Jonas Peregrino, protagonista do recém-lançado romance de ficção científica militarista Glória Sombria, já tem história. O primeiro conto do personagem, “Batalhas na Memória” foi publicado na semiprofissional Scarium MegaZine n.º 19, de 2007. Seguiram-se as noveletas “Descida no Maelstrom”, em Futuro Presente (2009), antologia organizada por Nelson de Oliveira; “Trunfo de Campanha”, em Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política (2011), com organização de Marcello Simão Branco; “A Alma de um Mundo”, em Space Opera II: Jornadas pelo Hiperespaço em uma Galáxia Não Muito Distante (2012), organizada por Hugo Vera e Larissa Caruso; e “Tengu e os Assassinos”, em Sagas Volume 4: Odisseias Espaciais (2013), com organização de Cesar Alcazar.

  

Edições que acolheram as narrativas curtas de Jonas Peregrino

Esses cinco textos da série intitulada “As Lições do Matador” não são os primeiros de Jonas Peregrino, na cronologia ficcional criada por Causo. Neles, já nos deparamos com um protagonista experiente, calejado, praticamente alheio a dúvidas ou indecisões. Trata-se de um herói pleno, capaz de solucionar conflitos de ordem moral, disposto a fazer valer o que considera justo sem hesitar. Nessas narrativas, seus parâmetros morais e de conduta já estão bem estabelecidos, e o personagem age seguro e confiante conforme os conflitos e os impasses acontecem.

Glória Sombria, cronologicamente, é a primeira aventura de Jonas Peregrino. O romance pode ser lido independentemente sem prejuízos, embora a leitura das narrativas anteriores forneça um quadro mais amplo do cenário em que Peregrino se movimenta. Em Glória Sombria, Causo consegue caracterizar o personagem de forma inteligente: não extrai dele seu lado heroico, honrado, para apresentar sua inexperiência. Como herói, afinal, é que os leitores identificam Peregrino, e mostrá-lo ainda sem a fibra conhecida o descaracterizaria sobremaneira. O personagem hesita e chega a se perturbar com as consequências de seus atos em Glória Sombria, mas é tão incorruptível quanto o Peregrino mais velho, aquele das narrativas curtas.

Diz o texto do marcador de página encartado na edição belamente ilustrada pelo veterano Vagner Vargas:

No século 25 a humanidade já avança profundamente em direção ao núcleo da galáxia, a partir do seu berço, o Sistema Solar.
São quatro as Zonas de Expansão Humana, mas é na quarta -- a mais rica e vasta, conhecida como "A Esfera" -- que os diversos blocos políticos da Terra encontram o seu maior desafio: armadas de naves-robôs empenhadas em aniquilar todas as civilizações espaciais que cruzem o seu caminho, em nome da supremacia absoluta dos seus criadores.

Glória Sombria narra a primeira ação de Peregrino na Esfera. Já é um guerreiro, mas não possui nenhuma experiência nos confrontos com as naves-robôs enviadas pelos alienígenas tadais – inimigos nunca vistos pelos humanos. Convocado pelo Almirante Túlio Ferreira, tem a missão de criar uma nova unidade de combate. A relação com o Almirante é tensa e, a princípio, Peregrino antipatiza com sua postura. O romance desenvolve a relação entre ambos em um crescendo sutil, com raro cuidado na caracterização – o que define os personagens e os torna reconhecíveis é o que vai provocar cada atrito (e, eventualmente, cada sincronia).

Não é apenas com os alienígenas que Peregrino precisa se preocupar nessa sua primeira e já grandiosa missão. Como que para compensar a falta de traços distintivos dos antagonistas tadais (cuja natureza é um mistério guardado para o futuro da série “As Lições do Matador”), Causo coloca outros problemas para seu protagonista, estes de rostos bem definidos e, até, familiares. Há traições, inveja e intrigas entre as próprias fileiras dos guerreiros humanos. E Peregrino, para resolver os desafios ao seu comando e à sobrevivência da raça humana, precisa tomar algumas decisões de resultados amargos, com danos colaterais. Ao final do romance, já encontramos um protagonista com calos a mais. A transformação do personagem, conduzida com naturalidade, não soa como tal; parece, sim, um amadurecimento.

Glória Sombria pode, sem dúvidas, ser chamado de “ficção científica brasileira”, e não apenas de “ficção científica do Brasil”. A diferença entre as duas expressões pode não saltar aos olhos, mas demarca a distinção entre a produção que apenas é produzida aqui em emulação aos autores estrangeiros e a que de fato consegue apresentar traços distintivos nacionais. E a origem pantaneira de Peregrino não é o maior deles. O sense of wonder (senso de maravilhamento, em tradução livre) tão caro ao autor é dado pela incorporação de elementos brasileiros ao cenário de batalha no espaço sideral: as descrições das espaçonaves de guerra com pinturas que remetem a animais da fauna brasileira são um exemplo de destaque.



Causo e a Editora Devir prometem dar continuidade à série. E mais: “As Lições do Matador”, futuramente, deve ter crossovers com outra série de narrativas de Causo, “Shiroma – Matadora Ciborgue”. De que forma isso vai se dar ainda está para ser contado, mas há um prenúncio em Glória Sombria: a presença de personagens “aumentados”, ciborgues tais quais Shiroma. Para enriquecer a experiência, há um site que fornece detalhes do universo ficcional desses protagonistas tão díspares, neste link. Esperemos que este primeiro romance de Jonas Peregrino seja uma mostra do que está por vir.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Imaginários em Quadrinhos: o primeiro volume



Imaginários é uma série de antologias de contos de fantasia, horror e ficção científica, aí incluídas as variações intercalares de cada um desses gêneros. Publicada pela Editora Draco, manteve a periodicidade anual do primeiro ao quinto volume. Os dois primeiros volumes foram organizados por Tibor Moricz, Eric Novello e pelo saudoso Saint-Clair Stockler; os três mais recentes, por Erick Santos Cardoso.


Imaginários: as antologias de contos


Além de novos autores, a série já publicou contos de nomes de destaque da ficção de gênero brasileira, como André Carneiro, Jorge Luiz Calife, Roberto de Sousa Causo, Eduardo Spohr, Gerson-Lodi Ribeiro e Luiz Bras. A série oferece um panorama dessa produção como tantas outras antologias de gênero brasileiras, mas a vantagem trazida pela periodicidade constante possibilita a formação de um panorama mais amplo.

Neste ano, foi publicado o primeiro volume de Imaginários em Quadrinhos, organizado por Raphael Fernandes. Trata-se de uma edição para livrarias. Capa cartonada, orelhas, papel de qualidade em 120 páginas: visualmente, a edição já atrai desde o primeiro contato. Como sua irmã literária, este primeiro volume traz histórias que, de uma forma ou de outra, lidam com os paradigmas temáticos e narrativos próprios da ficção de gênero. Com uma exceção ou outra, o tom geral do volume remete à francesa Metal Hurlant, que parece ter sido tomada como referência por alguns dos roteiristas e desenhistas compilados.

A primeira história, escrita e desenhada por Raphael Salimena, chama-se “Ôch” – trata-se de uma interjeição de dor ou cansaço pronunciada por um dos personagens principais, incomodado com a idade avançada. Salimena possui um traço coeso, com cuidado e apreço pelas expressões faciais, e um texto que cumpre seu papel e conduz de forma fluída a narrativa.

A história é centrada em um grupo de personagens envelhecidos que visualmente remetem à temática science fictional da terra devastada: possuem próteses mecânicas de aspecto improvisado e roupas em frangalhos, além de habitarem um deserto rochoso afim a Zardoz ou Mad Max. A esses personagens é contraposta uma multidão de pessoas em trajes comuns no nosso mundo, como ternos, xales e batinas. Nubla-se a oposição entre estaticidade e movimento, entre conservadorismo e mudança: a multidão encarna o mundo das normas, das proibições; os velhos, a vontade de mudar e de quebrar as regras. O confronto entre esses dois grupos é dado com humor e sarcasmo, preservados até a conclusão da história.

Seguem-se três histórias curtas escritas e desenhadas por Jaum: “Negro Nemo e o Tesouro Pornô”, “Páginas Marcadas” e “A Sinfonia da Transmutação”. O texto assume um caráter fabular com pendor insólito, e o desenho de Jaum acompanha a proposta de forma harmoniosa: os contornos são calculadamente imprecisos ou trêmulos, divorciados de uma representação realista. A impressão que a arte passa chega a ser de alucinação ou de percepção alterada da realidade.

“Negro Nemo e o Tesouro Pornô” recorre a uma ambientação distanciada para contar como se dá a descoberta do sexo por uma criança e seu grupo de amigos; “Páginas Marcadas” trata de um homem que recebe conselhos sentimentais de seu sagaz cachorro, e traz uma frutífera relação intertextual com O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar; “A Sinfonia da Transmutação” trata da degradação ambiental e da pequenez humana.

Relação intertextual é a tônica de outra história, “O Caso do Monstro do Ártico”. Intercalam-se elementos oriundos de narrativas de Mary Shelley (Frankenstein), Bram Stoker (Drácula) e John Polidori (O Vampiro). A apropriação é bem sucedida, resultando em uma colcha de retalhos bem costurada: história de ágil leitura, bastante movimentada. O roteiro, eficiente e despretensioso, é de Zé Wellington; a arte, de Marcus Rosado. Este é promissor e serve bem à narrativa, embora ainda careça de maior fluidez nas cenas de ação.

Valkíria, heroína voluptuosa estilo jungle girl, estrela duas histórias: “O Homem que veio do Céu” e “A Mulher Dourada”. Têm argumento de Alex Mir e Alex Genaro, e roteiro e arte do segundo. São histórias marcadamente pulp, com dinossauros, espaçonaves e civilizações perdidas. Compromissadas com o entretenimento, são narrativas cheias de energia e movimento. Demandam, mais do que quaisquer outras do volume, que o leitor compre a proposta e entre no divertido jogo de referências pulp.

As duas melhores histórias do volume trazem roteiro de seu organizador, Raphael Fernandes: “A Revolução não será Compartilhada”, com desenhos de Dalts; e “Apagão”, desenhada por Camaleão. Ambas são ficção científica de primeira linha: especulam e extrapolam tendências atuais de nosso mundo, de forma instigante. Sem hesitar, diria que concretizam plenamente o “distanciamento cognitivo” de Darko Suvin: por meio de uma representação distanciada, promovem um questionamento de ordem cognitiva acerca da realidade aparente.

“A Revolução não será Compartilhada” especula ficcionalmente acerca do famoso (famigerado?) grupo Anonymous. O protagonista, disposto a descobrir mais sobre o grupo, chega a surpreendentes revelações, através de um mergulho físico no mundo virtual por meio da magia. Nisso, a história guarda similaridades com uma das primeiras edições do John Constantine de Jamie Delano e Mark Buckingham (recentemente publicadas pela Panini no encadernado Hellblazer Origens Vol. 1). Cabe citar a referência ao clássico Hellraiser, de Clive Barker: o protagonista tem em seu quarto uma Configuração do Lamento e um boneco de Pinhead, como que a ecoar a passagem de uma dimensão a outra promovida pelo personagem. A Configuração do Lamento, lembremos, conduz ao inferno, algo bastante próximo dos caminhos que o protagonista vai trilhar no mundo virtual. Os traços de Dalts retratam com eficiência a transfiguração corpórea do personagem, tanto que foram eles os escolhidos para ilustrar a capa do volume.

“Apagão” trata de uma São Paulo pós-apocalíptica. Triste notar o quanto parece verossímel o mundo caótico originado pela mera falta de energia – fica a sensação de que o resultado seria similar ao mostrado na história, caso um apagão se estendesse muito na metrópole. Se o romance Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, pintava uma São Paulo degenerada por obra de uma série de fatores, hoje basta basta um único fator para pôr tudo a perder. Ou seja, estamos mais que nunca na corda bamba. 

A história é soberbamente desenhada por Camaleão. Consta no volume que é seu primeiro trabalho fora do humor, o que muito surpreende: os desenhos transbordam drama, dor e sujeira. Ainda assim, aqui e ali (por exemplo, quando os corpos se inclinam para a frente quando em movimento rápido) é possível notar uma representação mais comumente vista em quadrinhos de humor.

“Apagão” recentemente atingiu sua meta em um projeto apresentado no Catarse (site de crowdfunding), e logo veremos mais histórias ambientadas nessa terrível (mesmo que estilosa) São Paulo futura.

Imaginários em Quadrinhos Volume 1 pode servir como uma boa introdução a quem ainda não está ciente de que há uma infinidade de artistas brasileiros de qualidade não incorporados ao mercado estadunidense de super-heróis. Contudo, ainda é cedo para julgar se a série vai ser capaz de fornecer um panorama tão completo de nossa produção quanto a série de contos Imaginários. Para tanto, espero que os próximos volumes tenham também contribuiçoes de artistas nacionais já estabelecidos por aqui, como Mozart Couto e Julio Shimamoto. Se a periodicidade for constante como na série de contos, fornecer tal panorama deve ser uma meta fácil de alcançar.