quarta-feira, 9 de abril de 2014

Hiperconexões - realidade expandida, organizado por Luiz Bras

Máquina de afetos

a lua não é sabedoria
o amor também não
ou a musa
o gato
a tosse
nem a palavra é

sabedoria são neurotransmissores
nos encaixes certos
sinapses
sinais
sina
                              Claudio Brites



Hiperconexões – Realidade expandida é uma antologia de proposta incomum: reúne poemas afins à ficção científica. Como gosta de lembrar Luiz Bras, organizador do volume, o gênero é definido (ou é reconhecível) pelo tema, e não pela forma. Tematicamente, assim, se dá o vínculo: como é recorrente nas narrativas de ficção científica, os poemas compilados tratam das particularidades científicas e tecnológicas contemporâneas e de seu impacto no homem. Obviamente, há um pequeno conflito taxionômico no uso da categoria, conflito que, longe de invalidar a proposta, sinaliza mais uma limitação do termo “ficção científica”.

Há alguns precedentes na literatura brasileira. Um exemplo conhecido de nossa comunidade de autores e leitores de ficção científica é André Carneiro, que escreve tanto em verso quanto em prosa e permite que os dois registros se interpenetrem. Um dos poemas de Espaçopleno (1963) tem, inclusive, o título “Ficção científica”. Carlos Drummond de Andrade é outro precedente: entre outros poemas, “A máquina do mundo” merece um estudo cuidadoso que o avalie à luz dos paradigmas próprios da ficção científica. Augusto dos Anjos é outro caso a ser pensado, em sua frequente exploração poética de termos e conceitos científicos.

Hiperconexões é uma antologia marcadamente contemporânea, disposta a tratar de um homem chamado de “pós-humano”. O termo, para este leitor, não é dos mais pertinentes na abordagem da contemporaneidade. Contudo, tratando-se de uma antologia literária, e não de uma compilação de ensaios teóricos, o importante é que os poemas conseguem promover no leitor um olhar distanciado acerca de tendências em curso. Tratam de um homem que perdeu referenciais antigos e abarca os novos com assombro, desdém ou maravilha. Nesse ponto a antologia evoca a tradição literária da ficção científica: desde seus primórdios, esta é uma das recorrências temáticas do gênero.

A lista de autores é ampla e expressiva: Ademir Assunção, Amarildo Anzolin, Ana Peluso, Andréa Catrópa, Braulio Tavares, Claudio Brites, Daniel Lopes, Edson Cruz, Elisa Andrade Buzzo, Fabrício Marques, Fausto Fawcett, Gerusa Leal, Ivan Hegen, Jane Sprenger Bodnar, Luci Collin, Marcelo Finholdt, Márcia Barbieri, Marco A. de Araújo Bueno, Mariana Teixeira, Marilia Kubota, Marize Castro, Ninil Gonçalves, Patricia Chmielewski, Renato Rezende, Rodrigo Garcia Lopes, Ronaldo Bressane, Sérgio Alcides, Thiago Sá, Valério Oliveira e Victor Del Franco.

Graças à provocativa e coesa proposta do organizador, o volume alcança uma unidade temática pouco vista. Contribui nisso a ausência do indicativo de autoria poema a poema – é preciso recorrer ao índice para saber quem escreveu cada um. Opção nada usual, traz à mente a diluição do conceito tradicional de autoria, diluição tão presente em tempos de uma poética acentuadamente apropriativa – ou seja, uma arte que explicitamente se constrói com base na referência e na colagem de trabalhos alheios. Ainda que alguns leitores tenham a impressão de que a ausência dos nomes dos autores abaixo do título de cada poema se deva a um erro editorial, o efeito obtido é justamente o de apresentar os textos como que misturados em uma espécie de autoria compartilhada. Os textos se vêem como que em uma hiperconexão.

Não que os poemas não sejam dotados de particularidades e demandem leituras também particularizadas. Pelo contrário: tematicamente homogênea, a antologia é heterogênea no que cabe às diferentes expressões poéticas. Da sobrecarga sensorial emulada por Fausto Fawcett, criando sentido pelo acúmulo e pelo excesso, à economia expressiva de Claudio Brites, atenta à multiplicidade que cada pequena palavra pode despertar, é cumprido o papel de uma antologia: ilustrar diversas facetas de um objeto comum.

Hiperconexões constitui, ainda, mais uma etapa no projeto de enriquecer a literatura “mainstream” (aspas enfáticas) com paradigmas próprios da literatura de gênero – projeto iniciado pelo antecessor de Luiz Bras, Nelson de Oliveira. O projeto vinha sendo executado com sucesso na prosa, e agora chegou a vez do verso. Isso pode ser observado já na lista dos autores da antologia, composta tanto por autores conhecidos por sua ficção científica quanto por autores à primeira vista estranhos a ela. Hiperconexões pode ser compreendido assim: como uma ponte ou, melhor, uma conexão entre mundos que não devem permanecer à parte.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Café Flesh (1982), de Rinse Dream



“Able to exist, to sense... to feel everything – but pleasure. In a world destroyed, a mutant universe,
survivors break down to those who can and those who can’t.
99% are Sex Negatives. Call them erotic casualties. They want to make love, bur the mere touch of another makes them violently ill. The rest, the lucky one percent, are Sex Positives, those whose libidos escaped unscathed.
After the Nuclear Kiss, the Positives remain to love, to perform… And the others, well, we Negatives can only watch… can only come… to… CAFÉ FLESH…”


Café Flesh (1982), de Rinse Dream, principia com o texto acima, narrado por uma sensual voz feminina. É o bastante para delinear o “universo mutante” distópico por onde circula o apático e entristecido casal de protagonistas. Em brechas, o cenário é aprofundado no decorrer do filme. Trata-se de um estado autoritário que faz uso da coerção para impor uma estranha dinâmica sexual, na qual os Sex Positives são legalmente obrigados a fazer espetáculos de sexo explícito para plateias de Sex Negatives. Para aplicar a lei, uma polícia de cunho fascista vasculha o mundo à procura de Sex Positives ainda não incorporados aos espetáculos do Café Flesh. Uma vez forçados a fazer os espetáculos, os Positives são facilmente cooptáveis com a sedução da fama e da riqueza. São os únicos capazes de saciar os próprios desejos, e são incentivados a fazer isso.



O meio ambiente é degradado: não há cenas externas (as únicas locações do filme são o próprio Café Flesh e uma sala do apartamento dos protagonistas), mas é possível perceber uma chuva ácida incessante no lado de fora, castigando as janelas e se intrometendo com água e fumaça sempre que uma porta é aberta para o exterior. Alguns personagens carregam os efeitos do ambiente insalubre, como pele acinzentada e queimaduras purulentas. São marcas da “Terceira Guerra Mundial”, mencionada perifericamente, e do “Beijo Nuclear”, este também responsável por cindir a humanidade em Sex Positives – aqueles que conseguem fazer sexo e se excitar com o toque de alguém – e Sex Negatives – aqueles biologicamente incapacitados de sentir prazer com o sexo.


A narrativa é conduzida por Max Melodramatic (Andy Nichols), o mestre de cerimônias do Café Flesh. Sua intermissões, dirigidas tanto ao público ficcional quanto a quem assiste ao filme, sempre são seguidas por um espetáculo de sexo explícito no palco do bar. O personagem, contudo, tem uma participação maior no decorrer do enredo, e é dono de seus próprios conflitos. Na linguagem dissociativa, no uso de alegorias e nos aparatos cênicos bizarros, os espetáculos apresentados por Max trazem algo da arte performática como a contemporaneidade a enxerga.



Na primeira cena de sexo do filme, por exemplo, uma dona de casa a tricotar é surpreendida por um rato antropomórfico em trajes de leiteiro. No fundo do palco, homens em trajes de bebê brandem ossos com gestos agressivos. O rato vem para perturbar um cotidiano seguro e tedioso, incorporando aquilo que está sempre escondido (tanto o rato de esgoto quanto os desejos antes contidos da mulher) mas que se faz necessário para o bem estar. Como se a consumação dos desejos da solitária dona de casa fosse tão importante quanto sua própria nutrição, o leite que o rato traz. No palco do Café Flesh, eles fazem sexo por longos minutos, enquanto o público de Sex Negatives observa com luxúria e estupefação. E os bebês no fundo do palco seguem furiosos, batendo os ossos como que a pedir mais comida – a satisfação não se dá plenamente com a consumação dos desejos, pois a vontade continua a martelar, constante e inevitável.



Pela descrição da cena, é possível perceber que não se trata de um material estimulante, o que geralmente não é – ou não deveria ser – a tônica de um filme pornográfico. O prazer que os Negatives sentem é acompanhado de desconforto, porque nem se masturbar eles conseguem sem sentir dores terríveis. A edição enfatiza o ponto, interrompendo a performance no palco a todo momento para mostrar os espectadores em um prazer que também é dor – embora, é forçoso admitir, por vezes as inserções de imagens do público sirvam como meros cats in the window, a fim de corrigir ou disfarçar problemas de continuidade. Além disso, as cenas são bizarras o bastante para provocar um estranhamento genuíno.


Outra cena de sexo digna de nota é uma que principia com uma vagina sendo acariciada em detalhe, ocupando toda a tela. Ao lado, uma calcinha, aparentemente recém despida, com uma estampa da bandeira dos Estados Unidos. Soa um sirene de bombardeio e o barulho de explosões: é a guerra ao fundo. A cena é repleta de imagens relativas à guerra: sombras de morteiros, trajes militares nas mulheres e há bombas e armas espalhadas pelo palco. Ao invés de forçar uma relação entre o prazer e a violência, a performance mostra um desarranjo entre ambas: o prazer é colocado como algo capaz de esconder uma situação desagradável, cumprindo sua parte no velho esquema do “pão e circo”.


Café Flesh lida, nessa cena específica e como um todo, com uma temática manejada já por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo: a fim de conter o descontentamento para com a situação vigente, o Estado distópico distribui um prazer barato. Passa a ser uma função das forças repressoras fiscalizar se o povo está agindo como pedem os mecanismos compensatórios e garantir que estes funcionem de acordo.


Angel é uma personagem do filme que põe a instância em pauta: Positive, ela esconde sua condição por ter medo de perder a virgindade no palco. A força policial, os chamados enforcers, a rastreiam e obrigam a participar dos espetáculos do Café Flesh. A princípio, ela reage com horror, mas logo cede à vida de celebridade e à pretensa liberdade de fazer sexo para o deleite e a agonia dos Negativos.


O ritmo da narrativa é geralmente bastante lento nos filmes pornográficos, mas não é o caso de Café Flesh. Em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, Umberto Eco fala sobre como o gênero lida com o tempo na narrativa. Como ele observa, tudo o que não é ato sexual é narrado com elipses e saltos temporais; por outro lado, o sexo em si é mostrado em tempo real – ou seja, o tempo da narrativa equivale ao tempo cronológico. É o caso de Café Flesh, mas nele as cenas de sexo não se estendem ao ponto de despertar monotonia e de abolir qualquer parâmetro coerente de ritmo narrativo, o que é quase uma regra da produção XXX que se seguiu. As continuações tardias do filme (são duas, uma de 1997 e outra de 2003) servem de exemplo desse vício desenvolvido pelo gênero: se as cenas de sexo se estendem tediosamente por vinte ou até trinta minutos, é porque não parece haver de fato uma história a ser contada.


O casal de protagonistas vive um conflito insolúvel: Lana (a musa Michelle Bauer, ainda bastante jovem e atuando sob pseudônimo) é uma Positive, mas esconde isso de seu parceiro, Nick (Paul McGibboney). Enquanto para Nick os espetáculos do Café Flesh são cada vez mais frustrantes, Lana flerta com a tentação. Ela quer subir ao palco e participar, Positive que é. Não lhe cabe o papel de observadora, mas ela se coloca nele por amor a Nick. Fica nesse pêndulo, oscilando entre o amor e o desejo auto excludentes.




No texto introdutório do filme, a narradora diz “...bem, nós, os Negatives, podemos apenas observar... podemos apenas vir para o... CAFÉ FLESH”. Com “nós”, ela não parece dizer apenas “eu e os outros Negatives”, mas também “eu e você, os Negatives”. A impressão é reforçada durante o filme todo: sempre que há uma apresentação no palco do Café Flesh, a edição (a todo momento retornando às reações ao espetáculo) e os ângulos de câmera (comumente a reproduzir o ponto de vista do público) buscam colocar quem assiste ao filme no lugar dos espectadores do Café Flesh. O efeito resultante tem algo de perturbador: em simultâneo, no plano ficcional e no empírico, é duplamente reproduzida a fruição do material pornográfico, mas ela se vê acrescida de um viés crítico que acaba por colocá-la em suspenso.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2012, de Marcello Simão Branco e Cesar Silva



Há nove anos, o Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, de Marcello Simão Branco e Cesar Silva, cuida da produção publicada no País, documentando-a em suas particularidades estatísticas e qualitativas. Por literatura fantástica, aqui, deve-se entender os gêneros que vão além das fronteiras da realidade conforme experimentada pelos nossos sentidos – e não a teorização sobre o fantástico promovida sistematicamente por T. Todorov. O Anuário é publicado, obviamente, no ano seguinte ao tomado como análise – ou seja, o lançado neste ano trata do ano passado, 2012. Para suprir uma carência, o relativamente pequeno alcance da produção nacional de horror, fantasia e ficção científica junto ao público leitor, o foco recai sobre as publicações brasileiras. As traduções de textos estrangeiros, contudo, também são levadas em conta pelos autores.

Tradicionalmente, o Anuário procura cobrir em várias frentes os doze meses que toma como análise. Há a sessão que compila as listas dos prêmios literários nacionais e internacionais, na qual as informações acerca dos premiados são reunidas para constituir uma visão panorâmica das obras e dos autores que se destacaram nas premiações do ano. Medir a repercussão de determinadas obras entre críticos e fãs se torna uma tarefa simples: não é incomum a presença de um mesmo texto em premiações diferentes, assinalando fortemente uma tendência rumo ao cânone particular de cada gênero. Em 2012, por exemplo, tivemos a sintomática premiação do romance Amog Others, de Jo Walton, no Nebula, no Hugo e no British Fantasy.

Também é fixa a sessão de obituários, com informações pontuais sobre a vida e a obra das personalidades – escritores, editores e fãs ilustres – que faleceram no ano. Sem minimizar o impacto das outras perdas, na edição de 2012 o falecimento de Ray Bradbury é o triste destaque: além de uma lista completa das edições publicadas no Brasil e em Portugal, há um texto de fôlego sobre a carreira desse autor tão lido e admirado também pelos brasileiros.

Um dos pontos altos do Anuário é a cuidadosa análise do mercado, com textos embasados em levantamentos estatísticos. O levantamento pormenorizado das publicações do ano não tem paralelos no Brasil, e serve como nenhum outro para análises de tendências do mercado editorial. Graças ao Anuário é possível, por exemplo, afirmar que os últimos anos têm sido singulares para a publicação de literatura fantástica no País, uma vez demarcado numericamente um progressivo crescimento no volume de edições.

O Anuário de 2012 traz, ainda, as habituais resenhas. Auxiliando Silva e Branco frente ao grande volume de obras a serem discutidas, algumas resenhas são assinadas Álvaro Domingues. Não há prejuízo: suas análises possuem equilibradas quantias de informação e de avaliação crítica. No volume do ano estão resenhados, entre outros, Contos do Sul, de Simone Saueressig, Descobrimentos, de João Batista Melo, Estranhas Invenções, organizado por Ademir Pascale, Geração Subzero, organizado por Felipe Pena, O Grito do Sol Sobre a Cabeça, de Brontops Baruq (leia minha resenha dessa coletânea aqui), Kaori e o Samurai sem Braço, de Giulia Moon, Sozinho no Deserto Extremo, de Luiz Brás, Trilhas do Tempo, de Jorge Luiz Calife, e A Máquina Diferencial, de William Gibson e Bruce Sterling.

Acerca das obras escolhidas para análise, algumas palavras sobre mercado e valoração literária vêm a calhar. Embora o Anuário se dedique a uma análise pormenorizada do mercado e de seu momento atual, ele não se subordina ao mercado. Quer dizer, a seleção das obras a serem resenhadas não se deixa orientar acriticamente por listas de “mais vendidos”, mas pelo que cada texto tem de potencialmente singular. Mostra disso é que a maioria das resenhas são positivas; não parece haver tempo e nem espaço a perder com o que não passa de pastiche servil. Se há críticos rancorosos que preferem cuidar das obras mal realizadas para apontar-lhes os problemas, há outros que preferem voltar os olhos principalmente para a literatura que alcança suas potencialidades – no mais, o próprio silêncio pode ser um juízo crítico incisivo como poucos. Os autores do Anuário parecem fazer parte do segundo tipo, fomentadores da literatura que se realiza plenamente.

Na edição de 2012, a “personalidade do ano” escolhida para uma longa entrevista, concedida a Branco e Silva, é Simone Saueressig. Os motivos apontados são a qualidade de seus textos e sua alta produtividade em 2012 (três livros e contos em antologias). A escolha se justifica na leitura da entrevista, bastante fértil e transcrita de forma a preservar a cadência própria da fala. A conversa é fundamentalmente sobre a escrita da autora, das primeiras tentativas aos textos mais maduros de hoje, e rende bastante.

O volume traz ainda a costumeira seção “Efemérides”, onde eventos importantes da história da ficção científica, do horror e da fantasia brasileiros são registrados e analisados, com uma janela cronológica mínima de vinte anos. Há resenhas de textos do passado, como o clássico Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga.

Por fim, encerra a edição o ensaio do “Convidado especial” Ivan Carlo Andrade de Oliveira, “A ficção científica nas histórias em quadrinhos brasileiras”. O pesquisador corresponde ao que normalmente se espera da sessão: um discurso mais inclinado para a pesquisa acadêmica e um teor que escapa do âmbito da crítica militante.

O Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2012 mantém o nível das edições anteriores e, como elas, se oferece como um instrumento indispensável para aqueles interessados em conhecer a ficção científica, o horror e a fantasia em suas particularidades nacionais. Não se trata de uma análise fria e distanciada do mercado brasileiro, mas comprometida com seu avanço e desejosa de que esse avanço se dê de forma saudável. Como os anuários passados, é uma edição que serve tanto aos pesquisadores quanto a qualquer um que procure indicações seguras de leitura, embasadas em um conhecimento da literatura fantástica pouca vezes visto.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Mars Attacks!, da Topps



Mars Attacks! (1996), deTim Burton, é uma comédia escrachada, com interpretações exageradas, diálogos nonsense e gags físicas. Nada poderia ser mais distante do teor a permear os violentos trading cards  que inspiraram o filme, lançados em 1962 e retomados em 1994. Em sua primeira encarnação desenhados por Wallace Woods e Norman Saunders, os cards não possuíam um humor que se assumia como tal. Pelo contrário: com um espírito genuinamente pulp, a narrativa sequencial parece se levar a sério, por mais exagerado, absurdo ou risível que seja seu desenrolar – isso se dá no plano da recepção, não da confecção; pouco importa, portanto, se essa era a intenção dos autores.
O tom sensacionalista confere um ar de grandiosidade e, ao mesmo tempo, dá uma piscadela: não há um desarranjo entre o narrado e sua forma? Ao leitor cabe o sense of wonder, o horror ou a risada? Ou os três? É como se o leitor não soubesse que efeito o texto (a imagem e a legenda de cada card) espera dele. Trata-se do espírito pulp ainda hoje intacto em narrativas das mais distintas, em gêneros como terror e super-heróis.



Indecisão ou ambivalência quanto aos efeitos que uma obra pode provocar são valores mais produtivos que a certeza – ou, neste exemplo, mais produtivos que o escracho. O problema não é a pouca fidelidade de Burton ao material original (ele é o autor de seu filme e pode fazer com ele o que acha que deve), mas sua opção por um registro menos amplo e, assim, aquém. A opção pode ser compreendida de acordo com as questões de status artístico: não cabe a um diretor consagrado deslizar para o pulp; para remexer esse tipo de material, seria preciso assumir explicitamente que nada está sendo levado a sério.


Abaixo, todos os cards de Mars Attacks! da Topps, em sua primeira encarnação (clique no botão direito do mouse e na opção "abrir imagem em nova guia" para ver maior):









sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Wild Cards, editado por George R. R. Martin



Wild Cards é um colossal universo compartilhado, composto por 22 livros e capitaneado por George R. R. Martin. A série é conduzida por uma ampla equipe de autores, alguns deles com destaque na literatura de gênero, como Chris Claremont, Melinda Snodgrass e Lewis Shiner. Comumente chamada de “romance mosaico”, Wild Cards tem uma estrutura narrativa peculiar: compõe-se de contos e romances algo independentes que, quando lidos em conjunto, formam um quadro maior.

A estruturação, embora atípica, não é uma novidade plena. Na literatura, pode ser traçado um paralelo com a narrativa epistolar, aquela composta pelas cartas trocadas entre os personagens (Drácula, de Bram Stoker, e Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, são exemplos). A cada novo segmento há uma mudança no foco narrativo, resultando em um enredo que, visto segundo o ponto de vista de cada personagem, se completa também como um mosaico. Da variação do foco resulta uma história que na verdade é várias histórias. Como em Wild Cards.

A diferença que se coloca entre um caso e outro é bem evidente: na série de livros organizada por Martin a narrativa predominante é em terceira pessoa; na narrativa epistolar, em primeira. Outro ponto que cabe frisar é: as obras epistolares nem sempre apresentam a variação no foco narrativo. Por exemplo: Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, dá a conhecer os escritos do próprio protagonista, mas não do destinatário.

Contudo, o paralelo com a narrativa epistolar talvez não seja o mais imediato. Há outro ainda mais significativo: as ongoing series (as mensais) de super-heróis cujas normas Wild Cards explora e distorce. Como se dá na Marvel e na DC, para ficar nos exemplos mais conhecidos, o título mensal de um personagem dessas editoras se relaciona, às vezes intensamente, com os títulos dos outros. Assim, as narrativas existem em interação, constituindo um universo ficcional amplo, compartilhado.

Também podem ser traçadas relações muito estreitas com uma HQ autocontida, a minissérie em 12 partes Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. Tanto em Wild Cards quanto em Watchmen, há a fragmentação do foco narrativo, há o mosaico, há a tentativa de cunhar um universo de super-heróis que coloca em xeque os parâmetros do gênero, esgarçando-os. No universo de super-heróis tradicional não são exploradas as decorrências culturais, sociais e históricas provocadas pela presença de pessoas com superpoderes – não vemos, por exemplo, a interferência dos supers em guerras reais ou na política interna. Em Wild Cards e Watchmen, há essa preocupação – isso os aproxima mais da ficção científica, na tendência do gênero de abordar o impacto dos nova (as “novidades estranhas” da FC, de acordo com a conceituação de Darko Suvin) na vida do homem.

Os contos do primeiro volume de Wild Cards tratam da detonação de uma bomba alienígena em Nova York, nos anos 40, e das consequências nos decênios que seguem, chegando até o princípio dos anos 80. A bomba liberta sobre a cidade o vírus carta selvagem, que é capaz de matar, provocar deformações ou gerar superpoderes nos afetados. Os deformados são chamados de curingas e fadados a viver em uma periferia assolada pela criminalidade. Causam repulsa ao resto da população e se vêem privados do direito de ir e vir. Os agraciados com superpoderes são chamados de ases e se tornam celebridades ou peões nas mãos do governo norte-americano. Apenas alguns dos ases, como o carismático Tartaruga, escapam desse contexto de exploração midiática ou governamental, configurando-se em sintonia com os super-heróis tradicionais.

Trata-se de um alegoria do preconceito racial, conforme sua conformação norte-americana. O Bairro dos Curingas, de acordo com essa leitura, equivale às periferias com concentração de negros e/ou imigrantes latinos. Recebem pouca atenção do poder público, têm altos índices de criminalidade e são tomados como indesejáveis pelos dominantes WASPs (brancos, anglo-saxônicos e protestantes). Wild Cards volta um olhar significativo, despido de condescendência, à minoria desprovida de direitos: não a caracteriza meramente como vítima, o que conduziria ao paternalismo, mas como composta por pessoas que conseguem enxergar e articular criticamente sua condição de excluídos.





No Brasil, dois derivados de Wild Cards foram publicados nos anos 90: uma excelente minissérie em quadrinhos que adapta segmentos das narrativas literárias; e as páginas anexas do suplemento de RPG GURPS Supers, constituídas de descrições do cenário e fichas dos personagens da série. Nesses derivados, o brasileiro encontrou uma instigante amostra dos livros que, não fosse o sucesso de Game of Thrones, de Martin, talvez não fossem publicados por aqui.




A Editora LeYa, assim, preenche uma lacuna muito incômoda para aqueles que tiveram contato com os quadrinhos ou com o suplemento Supers. É um alívio poder finalmente conferir a qualidade da série em uma edição cuidadosa e visualmente agradável. A tradução, a despeito de um ou outro deslize, não compromete e o texto flui bastante bem em português. Raphael Draccon, o curador da série no Brasil, fez um trabalho de organização muito eficiente que deve se manter nos próximos 21 volumes. Durante os próximos anos (serão publicados três livros anualmente), será um prazer finalmente conhecer o mundo de Wild Cards em toda a sua complexidade e riqueza.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

The Abomination (1986)




O horror pode ser compreendido como um gênero que, tematicamente, põe em cena conflitos entre o velho e o novo, entre o conservador e o dinâmico, entre as gerações passadas e as atuais ou vindouras. Trata-se de um ponto constitutivo mas não condicional do gênero – ou seja, pode ajudar a constituir determinada obra mas não é condição para que um filme seja enquadrado ou não no gênero; o elemento pode estar ausente. O topos da assombração, dos mortos incorpóreos que por um motivo ou outro voltam para atormentar os vivos, é dos exemplos mais claros. Das raízes góticas à reinvenção promovida por Stephen King em O Iluminado e Christine, temos diante de nós vivos que têm suas energias minadas por seres (ou, em King, impressões deixadas por seres antes viventes) cujo tempo já passou, e que não têm mais o direito de caminhar sobre a Terra. São forças, nesse sentido, intrinsecamente retrógradas e avessas ao dinamismo que acompanha a vida.

Isso também se observa na frequente contraposição entre inocente e conspurcado, puro e impuro. Tomemos dois exemplos de períodos afastados. Em Drácula (1897), de Bram Stoker, o secular personagem título emerge de seu atrasado território para manchar a pureza de mocinhas incautas; em Hellraiser (1986), dirigido por Clive Barker, o tio depravado da protagonista é o responsável pela presentificação de forças do além imorais e desagregadoras. (No romance do qual o filme é uma adaptação, de autoria do próprio Barker, a protagonista não é aparentada ao depravado Frank, mas a diferença entre suas idades também é grande.) Ora, não é exagero dizer que Drácula e Frank são velhos pervertidos que ferem a pureza dos jovens – ou de qualquer outro que cometa a juvenil inocência de lhes dar espaço para agir.

Para falar desse ponto, A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), de Wes Craven, é paradigmático. Freddy Krueger é um homem da geração pregressa à dos protagonistas, queimado vivo pelo povo de Springwood depois de ter matado crianças da cidade. O personagem retorna nos pesadelos dos jovens de Springwood, como algo recalcado pelos pais que volta para atormentar os filhos. Alegoriza-se, assim, os erros e as frustrações dos progenitores que são repassados inadvertidamente à prole. A negação não se sustenta, e o que foi recalcado há de voltar – a carga freudiana do enredo salta aos olhos.

Acerca do contraponto entre inocente (jovem) e conspurcado/conspurcador (velho), cabe mencionar o figurino patentemente demodé de Freddy Krueger. Ao contrário dos jovens protagonistas, com roupas e cortes de cabelo afins à moda dos anos 80, Krueger usa calças puídas, um suéter listrado de vermelho e verde e um chapéu de modelo ultrapassado. Já na vestimenta ele é algo vindo de um passado superado, que à primeira vista não tem mais espaço.


A inclinação de Freddy Krueger à pedofilia (por definição, a conspurcação de uma criança inocente por obra de um adulto) não é explicitada, mas fortemente implícita. O comportamento lascivo do personagem sugere que ele fazia mais do que matar as crianças da cidade. Toda a expressão corporal de Robert Englund quando se aproxima das vítimas ajuda a cunhar essa lascividade. Além disso, a clássica cena em que Krueger lambe a boca da protagonista Nancy Thompson através do telefone indica a carga sexual perturbadora que o personagem carrega.



The Abomination (1986) é um longa metragem filmado em vídeo e muito timidamente lançado apenas nas locadoras norte americanas. A direção e o roteiro são de Bret McCornick, que dirigiu mais de uma dezena de filmes baratos de horror e ficção científica e hoje ainda atua como produtor. Trata-se de um gore de baixíssimo orçamento que, como é comum em produções do tipo, aposta em soluções criativas para driblar a falta de recursos. Mesmo levando isso em conta, há problemas que poderiam ter sido evitados.


O primeiro deles: o filme começa com uma montagem de suas cenas mais violentas e impactantes, o que atrapalha em muito o andamento da narrativa; a transformação pela qual vai passar o protagonista, bem como o agente dela, são entregados de pronto já nos primeiros minutos, antes que o enredo propriamente dito comece. Outro problema: talvez para preencher lacunas nas cenas que careciam de áudio, uma redundante narração em off foi sobreposta. Em poucos momentos a narração vai além de explicitar o que já é óbvio, e o recurso irrita logo de início. Ainda que o resultado final do longa seja positivo, a falta de dinheiro típica do cinema independente (e underground, o que nem sempre é a mesma coisa) precisa ser levada em conta para que as deficiências técnicas não entrem no caminho do trabalho valorativo.

O protagonista, um jovem correto e cumpridor dos deveres que lhe são atribuídos, se incomoda com o fervor religioso de sua velha e cancerosa mãe. Fanática, desenvolveu uma admiração desmedida por um pastor televisivo picareta. Boa parte dos discursos do pastor que são mostrados alertam para uma vindoura “abominação” mencionada na Bíblia, um mal capaz de trazer o apocalipse. A velha passa horas diante de seu televisor assistindo ao pastor e fumando cigarros, e não perde nenhuma oportunidade de convencer o filho a se juntar ao culto. Ele, entristecido com a vida que a mãe leva, não cede.


Certa noite, sozinha em casa, a mãe ouve ansiosa o pastor prometer curar o câncer dos espectadores. Pede que todos os cancerosos a ouvi-lo coloquem as mãos sobre o televisor e orem junto com ele. Terminada a oração, a mãe sente-lhe os efeitos: é atacada por uma tosse forte que só para quando ela cospe no chão o tumor que tinha alojado no pulmão. Joga-o no lixo da cozinha e, milagrosamente curada, adormece. Mais tarde, o filho retorna do cinema com a namorada e, estranhamente sem notar o tumor ainda pulsante e claramente visível no lixo, se recolhe. O tumor, então, rasteja como um ser vivo para a cama do jovem e entra-lhe pela boca.


A partir de então, o comportamento do jovem se altera drasticamente, e ele age como que possuído pela abominação de que falava o pastor televisivo. Cospe fragmentos do mal que habita seu corpo e os espalha pela casa: embaixo da cama, no armarinho do banheiro, atrás dos móveis da cozinha. Alimentada com carne humana, a monstruosidade cresce absurdamente. O jovem mata todos os que encontra pela frente para alimentar a abominação, inclusive sua própria mãe, ela que se considerava imune ao mal.






Apesar de todos os seus defeitos, o longa tem uma carga alegórica digna de nota – além dos efeitos especiais práticos de encher os olhos, é claro. A abominação é a hipocrisia materializada, o moralismo de fundo religioso que dana os que estão ao seu alcance. O filme trabalha de forma única o contraponto entre o velho e o novo, o conservador e o dinâmico: a fonte de ameaça vem do corpo ressequido de uma religiosa fanática, contaminando a geração seguinte a ponto de mergulhar a todos na violência irracional e injustificada. São as frustrações de outrora, arcaicas e arcaizantes, que ressurgem para assombrar o hoje.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Máquina Macunaíma, de Luiz Bras


Não vai ser fácil encontrar o novo livro de Luiz Bras, Máquina Macunaima. Contrabandeados de outra realidade dimensional, chegaram à nossa apenas 50 exemplares. Dadas as patentes qualidades do volume, podemos lamentar que o livro não tenha sido publicado em nossa dimensão ou, melhor, agradecer que ao menos alguns exemplares tenham passados incólumes pela transição de uma realidade a outra.
Lendo o autor, chego a duvidar que Bras seja nativo de nosso plano dimensional. O outro plano, aquele onde Máquina Macunaíma foi publicado, talvez tenha, ele sim, dado origem ao atípico autor de ficção científica e fantasia. É o que me dá a entender um dado biográfico encontrado em seus livros: ele teria nascido em uma cidade chamada Cobra Norato, no Mato Grosso do Sul. Ora, sei bem que por aqui no MS não existe uma cidade com esse nome. Na nossa realidade, não; na de Bras, talvez. (Em seu blog pessoal, o autor volta e meia fala sobre sua cidade natal; vale conferir.)
No novo livro, ele parece continuar a desenvolver uma proposta afim à de Nelson de Oliveira em projetos como a antologia de contos Futuro Presente (2009) e a série Portais, que teve alguns de seus contos compilados em um volume único, Todos os Portais: Realidades Expandidas (2012). A proposta de Oliveira, na organização dessas antologias, é aliar a auto-intitulada literatura mainstream, definida e delimitada por critérios formais, à literatura de gênero, por critérios temáticos. Isso, notemos, não demanda obrigatoriamente uma aderência ao preconceito frequente de que a literatura de gênero não dá atenção à forma; apenas que ela não é reconhecida como tal pela forma. Não por acaso, Nelson de Oliveira é o autor que cede suas mãos para que Bras escreva em nossa realidade e possa nela atuar.



Máquina Macunaíma é uma progressão natural do Bras visto em, por exemplo, Paraíso Líquido (2010) e Sozinho no Deserto Extremo (2012).É uma coletânea bastante coerente em suas opções formais e temáticas, a forma produtivamente interagindo com o tema e cambiando conforme suas exigências. Tematicamente, a coletânea se alinha à ficção científica contemporânea que incorpora a aversão a verdades absolutas e a incerteza que Freud, Einstein, Heisenberg e outros trouxeram para o pensamento a partir do século XX (tratei do ponto neste ensaio publicado na Zanzalá – Revista Brasileira de Estudos de Ficção Científica). Abaixo, breves notas sobre os contos da coletânea.



“Virtuais”, conto que abre a coletânea, trata de uma crítica já clichê quando se fala na imersão contemporânea em redes sociais e o consequente distanciamento provocado nas relações interpessoais. O olhar ficcional sobre essa válida crítica - embora por demais repetida – a reveste de novidade pela extrapolação e pelo exagero. No conto, se dá de forma literal o afastamento que paradoxalmente acompanha a aproximação no plano virtual. A grafia em itálico, que demarca o que se dá na rede, aparece pouco no começo do texto, mas acaba por prevalecer quando o afastamento entre os personagens se faz absoluto.

O conto seguinte, “Heidegger não voltará jamais”, desde o título nega a aplicação de conceitos pré-moldados ao homem e ao seu comportamento. Heidegger, o filósofo, é conhecido pelas especulações acerca do “ser” e das circunstâncias que condicionam sua existência. No conto, por outro lado, a tentativa de alcançar uma classificação abrangente, totalizante, de seus personagens está fadada ao fracasso. Frente à diversidade e à dúvida (quanto ao gênero sexual, por exemplo), não há como classificar de forma segura os seres com base em seus anseios ou em sua própria condição. Tudo isso numa narrativa policialesca ambientada em um bizarro futuro.

“Onde vivem os monstros” é de interesse para os que acompanham Bras e sua carreira: é ambientado na cidade natal do autor, Cobra Norato. O evento motriz do enredo é a proibição do prefeito ao Museu da Escultura da cidade, depois que um acidente com uma das peças provocou a morte de seu filho. A dor e o incômodo de teor crítico que a arte é capaz de provocar ou despertar são, assim, alegorizados. Diz o narrador: “Quem disse que a função da arte não é apenas entreter e deleitar, mas provocar e inquietar, estava certo. Provocar, inquietar, romper, fraturar a ignorância e o obscurantismo. Quebrar os ossos da ignorância.” Um grupo se organiza pela internet para, protestando, ocupar o museu. Então, o enredo introduz, em um universo ficcional à primeira vista apegado à apresentação realista, um elemento fantástico que acentua a distinção e a troca que pode se dar entre o mundo e sua representação artística.

“Impostor?” traz à cena a dúvida entre real e irreal, natural e artificial, que a ficção científica passou a manejar com maior intensidade a partir da New Wave norte-americana. É ambientado, pois, em um mundo onde as certezas quanto à identidade do próximo se vêem abaladas. Coincidentemente, a New Wave pode ser caracterizada pelo esgarçar da forma narrativa em aliança ao tema da dúvida. Sugere-se uma relação entre Bras e aquele grupo de autores, relação que pode muito render se explorada futuramente em textos críticos – acadêmicos ou não.

“Mecanismos precários” chama atenção pelo desvendar do processo criativo, que é explicitamente dado pelo narrador, em uma voluntária quebra do pacto ficcional. Os personagens e tudo o que o cerca são arquitetados às vistas do leitor, nublando a separação entre o narrador e o autor. Observa-se em primeira mão os seres de papel ganhando uma espécie de vida própria (distinta daquela dos seres palpáveis) e escapando aos desígnios traçados por aquele que narra, o criador. A despeito da tão atípica construção dos personagens, Bras surpreendentemente consegue criar uma empatia do leitor para com eles.

O tópico da identidade em seus limites e deslimites retorna em “O índio no abismo sou eu”. O conto traz à tona um ponto bastante presente na ficção científica produzida à margem dos centros hegemônicos: o desarranjo entre o avanço científico e a quantidade de benefícios trazidos ao homem. A desigualdade que acompanha a distribuição de novas tecnologias, afinal, é mais patente ou fácil de ser observada em um contexto alheio aos padrões de desenvolvimento hegemônicos. Como diz um dos personagens, “o futuro é apenas para quem pode pagar”.

Uma questão de ordem filosófica atormenta a protagonista de “Coisas que a gente não vê todo dia”: o infinito e a natureza do tempo. Seus questionamentos parecem promover mudanças na própria tessitura de sua realidade de jovem outsider, o que conduz a descobertas acerca de sua própria condição. A conclusão do conto chega a um parodoxo que não o é: o tempo tem uma natureza simultaneamente cíclica e infinita; o eterno retorno é também uma eterna mudança.

“Humana, demasiadamente humana” é um atípico conto “de gênero”: a fantasia (relacionada a uma percepção animista de mundo) e a ficção científica (ligada à ciência ou, ao menos, à apreensão cognitiva da realidade) trocam de lugar. No universo ficcional configurado pelo texto, a magia é banal e a tecnologia é a exceção; a magia provoca catástrofes ambientais cósmicas e a tecnologia pode evitá-las. Novamente, a protagonista é uma jovem que não consegue encontrar seu lugar no mundo.

O enredo de “Distrito Federal” guarda semelhanças com o primeiro conto da coletânea: a relação entre o mundo palpável e o virtual se dá com desarranjo; a noção de “real” se vê abalada e crivada de incertezas. Ambientado em Cobra Norato, o texto trata da interferência de um MMORPG na realidade mundana. Como é recorrente em Bras, os personagens principais são marginais, excluídos.

“Os olhos do gato” se dá em um mundo de estrutura matriarcal fortemente militarizada. Nele, as mulheres é que são criadas de acordo com uma perspectiva belicista. O título do conto remete a um rito pelo qual as guerreiras precisam passar para provar sua maturidade: cada uma deve arrancar os olhos do gato que criou, banida a compaixão. O texto, de acordo com uma das leituras possíveis, parece elaborar ficcionalmente a seguinte questão: para neutralizar os conflitos e constituir um mundo igualitário e pacifista, não basta a mera inversão de papéis; é necessária uma mudança profunda de perspectiva (de olhar), para que os mesmos erros cometidos pela sociedade patriarcal não se repitam em outro contexto – uma sociedade matriarcal, no caso do conto.

“Galáxias” é outro texto que lida com arranjos e desarranjos entre o palpável e o virtual. Avatares como Machado, Capitu, Borges e Isaac interagem, reduzidos a arquétipos que um vírus no sistema ameaça destruir. A questão da permanência da literatura quando seu suporte físico é modificado parece ser o tema central do conto.

“Primeiro de Abril: Corpus Christi”, o último conto do livro,se apropria de ícones da cultura pop, deslocando-os de seu contexto original para apresentá-los como que fazendo parte de um indistinto caldo cultural. Personagens como Homem de Lata, Chapeleiro Louco e Mulher Maravilha perdem seus traços distintivos, e o texto não constitui um diálogo propriamente dito com o que foi apropriado. A relação intertextual se vê manca, carente de um apoio maior na cultura pop que é matéria para apropriação. Isso porque o interesse não parece ser discutir os signos em si, mas como a representação midiática (de um lado) e a artística (de outro) podem, apropriando, desfigurar ou transfigurar. É uma proposta afim à de Roberto Drummond em alguns dos contos de A Morte de D. J. em Paris (1975).

Falando nisso, diversos contos de Máquina Macunaíma permitem uma leitura intertextual cruzada pela recorrência de personagens e situações; quando um personagem de um conto anterior reaparece em outro, o leitor precisa recuperar o contexto pregresso à luz do novo para promover tal leitura. Assim, a coletânea funciona não apenas como um apanhado de textos, mas de forma algo homogênea.


Sobre intertexto e o título da coletânea, Máquina Macunaíma, cabe observar que a máquina, em Macunaíma, de Mário de Andrade, alegoriza a indústria e a oposição que ela apresenta à natureza. Vendendo-se às máquinas, Macunaíma perde a chance de estabelecer uma cultura nacional. O herói sem caráter, por fim, chega à conclusão de que os papéis se inverteram na vida urbana: os homens são máquinas e as máquinas são homens (esta conclusão a que chega o personagem é a epígrafe da coletânea). Bras, associando “máquina” a “Macunaíma”, traz não o conflito de Macunaíma entre uma cultura que tenta se estabelecer e uma circunstância que a barra, mas de culturas, ou formas de apreender a realidade, associadas de forma harmoniosa ou não. Máquinamacunaíma, o homem e a máquina juntos: boa ou não, é a circunstância que serve de motriz à transfiguração ficcional de Bras.